domingo, 10 de maio de 2009

Recordar é viver - O sonho virou pesadelo

Bochum, Alemanha, 18 de setembro de 1976.

Amigos, era uma cálida tarde de sábado em Bochum. O Ruhrstadion recebia sua capacidade máxima: 18.000 pessoas se espremiam nas arquibancadas, ansiosas para ver a equipe local enfrentar o poderoso Bayern de Munique, então tricampeão europeu. Aquelas testemunhas suavam em bicas no calor de trinta graus, mas cada gota de suor valeria a pena. Eles não sabiam, mas estavam prestes a presenciar o maior milagre da história do futebol mundial.

Começou a peleja, e o centroavante do Bochum, Jupp Kaczor, parecia um tanque imparável. Ele estava sendo marcado por ninguém menos que Franz Beckenbauer. E - imaginem só! - fazia o Kaiser de gato e sapato! A defesa do Bayern só conseguia pará-lo a pontapés (Katsche Schwarzenbeck, em certo momento, fez uma falta na hora certa, impedindo o primeiro gol). A equipe da casa jogava desfalcada de seu principal criador de jogadas (Jürgen Köper). A situação piorou quando o importantíssimo líbero Klaus Franke se lesionou na coxa e precisou ser substituído. Era o fim: ninguém mais acreditava na vitória dos anfitriões.

O treinador do Bochum, Heinz Höher, foi corajoso e ousado: pôs o atacante Harry Ellbracht no lugar do líbero machucado. Aos quinze minutos de jogo, que técnico cometeria tamanha insanidade, ainda mais enfrentando o tricampeão europeu? Heinz Höher o fez, e foi recompensado. Para espanto dos pessimistas, ocorreu uma estrepitosa fúria de gols do Bochum! Aos 24, Harry Ellbracht cruzou, e o meia sueco Conny Torstensson, do Bayern, fez contra: 1 a 0. Aos 39, Jupp Kaczor arrancou do meio-campo, passou por três defensores bávaros, e chutou forte: o lendário arqueiro Sepp Maier nada pôde fazer: 2 a 0. Os torcedores já estavam radiantes de alegria, mas aos 42 a euforia aumentou. Schwarzenbeck perdeu a bola para Ellbracht, que correu sozinho até a meta de Maier. Disse "sozinho", mas já me corrijo: ele estava acompanhado pelos urros ensurdecedores da torcida. Ele chutou e marcou: 3 a 0 Bochum! Os fãs deliravam enlouquecidos nas arquibancadas: "Meu Deus do Céu, estamos batendo o melhor time do mundo por 3 a 0, e nem terminou o primeiro tempo ainda!". Os jogadores do Bayern reclamaram que o bandeirinha havia marcado impedimento de Ellbracht, mas o juiz Horstmann ignorou a marcação de seu auxiliar, e não aceitou as reclamações bávaras. Os melhores do mundo estavam tão ofendidos e nervosos que, na saída de bola, o artilheiro Gerd Müller simplesmente bicou a bola sem direção. Azaradamente, ela parou nos pés de um jogador do Bochum, que viu Sepp Maier fora do gol, ainda discutindo com o árbitro. E então resolveu chutar em direção à meta abandonada. Porém, a bola não entrou. Amigos, imaginem a cena e concluam o óbvio: o clima de loucura e tumulto aumentou ainda mais. O Ruhrstadion fervia como um caldeirão: parecia que explodiria a qualquer instante.

Veio o intervalo, e os craques do Bayern de Munique fizeram um pacto entre si: dariam sangue, suor e lágrimas por aquele escudo. Eles eram os tricampeões europeus, e não cairiam daquela forma medíocre. Porém, logo no início do segundo tempo, veio dos pés do Pochstein o quarto, decisivo e definitivo gol do Bochum. Pelo menos assim achavam os torcedores e jogadores locais. Nada poderia tirar-lhes a vitória: o sentimento do triunfo era inevitável. Os jogadores do Bochum esqueceram o futebol, e passaram a se preocupar com os livros de história: todos iam à frente para tentar o seu golzinho. O líbero Jupp Tenhagen, por exemplo, esqueceu-se de que estava marcando Gerd Müller, o maior artilheiro da Copa. O jovem corria para o ataque como se fosse um coelhinho de desenho animado! O Bochum começou a deixar espaços demais. O craque do Bayern Rummenigge penetrou pela defesa desguarnecida, e não deu chances para o goleiro Werner Scholz: 4 a 1. "É o gol de honra", tranqüilizavam-se os torcedores locais. Ninguém se preocupou, e a festa surreal continuou. Porém, dois minutinhos depois, Schwarzenbeck (o mesmo que falhara no terceiro gol dos anfitriões) arrombou as redes adversárias com um chute fortíssimo: 4 a 2. Estava decretado o fim do carnaval nas arquibancadas: um sentimento de mal-estar espalhou-se pelo Ruhrstadion. Em campo, o cenário mudara. A raiva dos bávaros estava canalizada em uma única direção: a meta do arqueiro Werner Scholz.

E o que aconteceu nos vinte minutos seguintes foi extraordinário. Gerd Müller, o centroavante do Bayern, se aproveitou da confusão e do medo na defesa anfitriã, e fez o terceiro: 4 a 3. "Não é possível! Será que vai acontecer?", se perguntavam atônitos os torcedores do Bochum, com o horror estampado em seus rostos. O técnico do Bayern, Dettmar Cramer, estava lá na beira do campo, ensandecido, incentivando seus atletas a continuar atacando. Os jogadores do Bochum estavam completamente exaustos, e os bávaros atacavam, atacavam e atacavam. Os anfitriões não conseguiam mais correr: suas pernas pareciam pesar mais que barras de chumbo. Mais cedo ou mais tarde, o antes inconcebível acabaria acontecendo: falta de Scholz em Dürnberger, e o árbitro Horstmann apontou a marca do pênalti! O arqueiro jurou que nem encostou no atacante, mas o juiz não lhe deu ouvidos. Müller cobrou e empatou: 4 a 4. Em estado de choque, o estádio estava silencioso. Três minutos depois, Uli Hoeness driblou um lento Erich Miss e chutou para a virada: Bayern 5, Bochum 4. O sonho virou pesadelo. Torcer para o Bochum naquele instante era viver o inferno na Terra. Vinte e três minutos antes, o placar apontara 4 a 0 para eles, e agora apontava 4 a 5.

Mas a surpreendente partida não havia acabado: após vinte e três minutos de paralisação, os jogadores do Bochum desandaram a correr feito loucos! E agora os bávaros é que estavam exaustos, após molharem tanto a camisa pela virada espetacular. E assim o Bochum entrou de novo no jogo. Eles simplesmente não poderiam deixar aquilo acontecer. O medo de se tornarem uma piada eterna os motivou a dar a vida por aquela partida: a honra estava em jogo. E em quatro minutos aconteceu o milagre: Horst Trimhold empatou a partida! 5 a 5!!! Suspiros de alívio no banco do Bochum, e nas arquibancadas do Ruhrstadion. Afinal, arrancar um ponto do Bayern era tudo que eles queriam antes do jogo. Porém, aos 44, numa arrancada parecida à de Kaczor no primeiro tempo, Uli Hoeness decretou o fim do sonho dos anfitriões. De onde ele tirou energia para aquele pique final, ninguém sabe. O que se sabe é que o placar final do jogo foi: Bochum 5, Bayern 6. Essa foi a história da Batalha de Waterloo do Bochum: um jogo sem paralelos na história.

"Nós tínhamos o Bayern tão certamente batido, e então acontece isso! Isso é inacreditável. Eu nem sei o que aconteceu comigo."
- Jupp Kaczor, atacante do Bochum.

"Eu não posso acreditar nisso."
- Werner Scholz, goleiro do Bochum.

"Isso simplesmente não pode acontecer."
Horst Trimhold, atacante do Bochum.

"Vocês jogaram um futebol fantástico por 50 minutos. Se Franke e Köper estivessem aptos a jogar, esta derrota não teria acontecido. Eu não vejo somente nossas falhas nos últimos 45 minutos, eu vejo nossa performance fantástica antes das falhas. Estamos no caminho certo."
Ottokar Wüst, presidente do Bochum.

O jogo do Ruhrstadion é a maior virada de que se tem notícia no futebol profissional em todos os tempos. Curiosamente, por ter sido "só mais um jogo da liga", a batalha se encontra em poucas listas de melhores jogos do Bayern de Munique. Porém, a partida encontra lugar de destaque na história do VfL Bochum, fazendo parte da sua galeria de folclores e mitos.


Após o apito final, os espectadores desciam as escadas internas do Ruhrstadion, com uma expressão de impotência em seus rostos. Havia algo de fluvial no lerdo escoamento da multidão. Um espetáculo raro acabara de se passar diante de suas retinas, mas era difícil atribuir realidade àquele inacreditável placar final. Algumas testemunhas até hoje não acreditam no que viram com seus próprios olhos. São uns santos Tomés às avessas.

PC
(com contribuição inestimável do amigo Tadeu N. Ferreira)

Escalações:
VfL Bochum: Scholz; Gerland, Herget, Franke (Ellbracht) e Lameck; Eggert, Tenhagen e Miss; Trimhold, Kaczor e Pochstein. Técnico: Heinz Höher
Bayern München: Sepp Maier; Andersson, Beckenbauer, Schwarzenbeck e Horsmann; Dürnberger, Uli Hoeness, Torstensson (Künkel) e Kapellmann; Rummenigge e Gerd Müller. Técnico: Dettmar Cramer.

Crédito das fotos 1 a 4: Horstmüller (retiradas da revista Mein VfL, do VfL Bochum, de 12/02/2004).

Foto 1: Uli Hoeness (jogador do Bayern, à direita) e Werner Scholz (goleiro do Bochum, caído). É o momento do sexto gol do Bayern.

Foto 2: Gerland (jogador do Bochum, à esquerda) e Sepp Maier (goleiro do Bayern, à direita).

Foto 3: Harry Ellbracht (atacante do Bochum, à frente) disputa a bola com Conny Torstensson (meia do Bayern).

Foto 4: Jupp Kaczor (atacante do Bochum, à esquerda) disputa a bola com Sepp Maier (goleiro do Bayern, à direita).

Foto 5: Sepp Maier e Uli Hoeness após a partida (crédito: Picture Alliance).

11 comentários:

  1. Site consultado:
    http://www.bigsoccer.com/forum/showpost.php?p=9812351&postcount=23

    Revista com as fotos e a matéria do jogo:
    http://www.vflbochum.de/vfl2005/mehrvfl/magazin/0304/express_2004_02_12.pdf

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  2. Que jogo inacreditável!!!
    Quando a gente acha que já viu tudo na vida...estamos errados, sempre há algo impensável e aparentemente absurdo para dar-nos um banho de realidade!!!

    Sensacional!!!

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  3. Ramón: o futebol nos ensina a nunca desistir. Nunca!!!

    Zitolito: você tem tanto mérito quanto eu no resultado. :)

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  4. Acho que esse foi o texto mais foda que já li aqui! Sensacional, PC! Vibrei com cada gol!

    Realmente, deve ter sido horrível torcer pro Bochum naquele dia xD

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  5. http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=28077&tid=5342780230635885782&na=4

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  6. Comunidade do Cartola FC:
    http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgPost.aspx?cmm=14088426&tid=5342783954424946856

    Comunidade Futebol Alternativo:
    http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=49510&tid=5342784787714547916

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  7. Comunidade Choque de Torcidas:

    http://www.orkut.com.br/CommMsgs.aspx?cmm=9071509&tid=5343080719445625720

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  8. Comunidade do Grêmio:
    http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=5251980&tid=5343179684075974100

    Comunidade Futebol Brasileiro 2009:
    http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=27228234&tid=5343122857611189988

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  9. Prezados, em 1976-77 eu morava em Essen (bem proximo a Bochum). Neste dia peguei um bonde, errei a parada, andei um bocado mas assisti a este epico jogo in-loco. Uma das minhas inesqueciveis recordacoes futebolisticas. Ao final do jogo ainda aconteceu um fato inusitado. Rummenigge perdeu o onibus da delegacao e precisava ligar para o hotel e pedir que os buscassem. Emprestei 20 Pfennige (centavos) para ligar de uma cabine telefonica. Inesquecivel !
    Maarten van Sluys (Belo Horizonte)

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  10. Caro Maarten,

    Que honra receber aqui uma testemunha ocular da partida!

    Espero que o relato tenha ficado parecido com o que aconteceu de fato no Ruhrstadion!

    Abraço!
    PC

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