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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Recordar é viver - Um time, um país

Johanesburgo, 24 de junho de 1995.

Às duas horas da tarde daquele sábado, o Ellis Park já estava lotado: 62 mil pessoas aguardavam ansiosas a final da Copa do Mundo de Rúgbi de 1995. Ainda faltava uma hora para o início do jogo entre o Springboks (a seleção da África do Sul) e o All Blacks (a seleção da Nova Zelândia). Os neozelandeses eram os grandes favoritos, pois contavam com as maiores estrelas do rúgbi mundial, incluindo o lendário Jonah Lomu, o Pelé do rúgbi. Mas a nação sul-africana, mais unida do que nunca, acreditava no milagre.

Para entender a grandeza do momento, é necessário voltar alguns anos no tempo. A África do Sul vivia o apartheid, regime de segregação racial mais cruel da face da Terra. A minoria branca, formada majoritariamente por bôeres, vivia nas ricas cidades. A maioria negra habitava os subúrbios, em condições desumanas. Os vagões dos trens eram separados por raças. As próprias ruas eram divididas entre ruas de brancos e ruas de negros. No documento do sujeito, aparecia a sua raça: branco, índio, mestiço ou negro. Dependendo da classificação, o sujeito tinha mais ou menos direitos. Dependendo da classificação, o sujeito era um cidadão, ou um marginal.

Nelson Mandela era um negro e, portanto, um marginal. Desde muito jovem, já demonstrava liderança e carisma. Em agosto de 1962, Nelson foi preso pelo regime, por fazer parte da oposição. Passaria os vinte e sete anos seguintes na prisão, junto com diversos outros líderes negros. Durante esse tempo, amadureceu a sua idéia de uma África do Sul unida, com brancos e negros convivendo pacificamente em um regime multirracial, em que todos possuíssem direitos iguais. Utopia, diziam todos ao seu redor. Afinal, se um dia a maioria negra conseguisse tomar o poder, provavelmente empreenderia uma vingança avassaladora contra os brancos, que passariam a odiar ainda mais os negros, num ciclo vicioso interminável. A idéia de Nelson era mesmo utópica, e nem mesmo os seus companheiros de luta conseguiam acreditar na possibilidade de ela se tornar uma realidade.

O rúgbi era o esporte preferido dos brancos na África do Sul, especialmente dos bôeres. Os negros preferiam o futebol, e particularmente odiavam o rúgbi, por ele ser um símbolo do sistema que os oprimia. Mais especificamente, o Springboks e seu uniforme verde-e-dourado eram muito odiados pelos negros. Cito um exemplo: em 1970, o All Blacks (seleção da Nova Zelândia) estava realizando uma excursão à África do Sul, e foi à cidade de Upington realizar uma partida contra o North West Cape, maior time local, orgulho dos bôeres da cidade. No pequeno estádio, com capacidade para nove mil pessoas, havia um pequeno setor para os negros, sob sol causticante. Nesse espaço, a torcida era entusiasmada, para os neozelandeses! O All Blacks massacrou a equipe local por 26 a 3, e os negros presentes vibraram muito com a derrota daqueles brancos gigantes que os humilhavam todos os dias.

Os negros odiavam os brancos, odiavam o Springboks, e odiavam também o seu uniforme verde-e-dourado, e também o hino nacional da África do Sul (Die Stem), e também a bandeira da África do Sul. Por sua vez, os brancos odiavam os negros, e a sua canção de liberdade (Nkosi Sikelele). Nelson Mandela, então, na condição de "terrorista número 1" da África do Sul, era o principal alvo do ódio branco. Eis o resumo do apartheid: duas nações vivendo em um mesmo espaço, odiando-se mutuamente.

Liderando uma das maiores revoluções da história da humanidade, cujos detalhes seria impossível descrever aqui, Nelson Mandela conseguiu estabelecer o regime democrático com que sonhara durante sua longa estadia na prisão. Em 1990, foi libertado, e em 1994, foi eleito presidente da África do Sul, nas primeiras eleições multirraciais da história do país. Mandela conseguiu não apenas convencer os brancos a aceitarem um governo de negros. Convenceu também os negros a aceitarem os brancos como parte da nova África do Sul. Uma das ferramentas utilizadas por Mandela foi exatamente o rúgbi. Com muita inteligência e muito carisma, ele conseguiu uma proeza. Convenceu os negros a não apenas deixar de odiar o Springboks. O mesmo uniforme verde-e-dourado, símbolo de tanta opressão para aquele povo, passou a ser amado por ele. Aquele primeiro sábado do inverno de 1995 testemunhou, pela primeira vez, a África do Sul verdadeiramente unida em torno de um mesmo objetivo.

Alguns símbolos do passado de dominação branca estavam extintos, como a bandeira nacional, que deu lugar a um belíssimo pavilhão multicolorido. Outros, como o hino nacional, haviam sido adaptados (o novo Hino Nacional, por insistência de Mandela, é um híbrido do Die Stem dos bôeres com o Nkosi Sikelele dos negros). Um símbolo do orgulho bôer havia sido mantido: o uniforme verde-e-dourado do Springboks. Com esse tipo de negociação, cedendo em alguns pontos, perdoando os erros do passado, é que Mandela conseguiu construir o país de seus sonhos.

A partida foi dramática. No rúgbi, a principal jogada é o try, que vale 5 pontos. Porém, as defesas de Springboks e All Blacks estavam tão bem dispostas que nenhuma das equipes conseguia um try. Assim, apenas chutes de pênaltis e dropkicks, valendo três pontos cada, fizeram girar o placar. Até o final do primeiro tempo, o sul-africano Joel Stransky tinha acertado três chutes no H, contra dois do neozelandês Andrew Mehrtens. Assim, o placar apontava: Springboks 9, All Blacks 6. No segundo tempo, Mehrtens conseguiu empatar, e o 9 a 9 levou a partida à prorrogação, pela primeira vez numa final de Copa do Mundo. Milhares sofriam atônitos nas arquibancadas. Milhões sofriam atônitos diante da TV.

O capitão sul-africano François Pienaar discursou para a sua tropa, no intervalo que antecedia o tempo extra: "Olhem em torno. Estão vendo aquelas bandeiras? Joguem para esse povo. É uma oportunidade única. Temos que fazer isso pela África do Sul. Vamos ser campeões do mundo!". Porém, a eloqüência de Pienaar não impediu que, no primeiro minuto da prorrogação, um chute de Mehrtens fizesse mais três pontos para o All Blacks: 12 a 9. O Springboks provavelmente teria que amargar o vice-campeonato.

Mas, no último minuto do primeiro tempo extra, Stransky cobrou outro pênalti alto, direto entre os postes: 12 a 12! E então veio o decisivo segundo tempo extra. A sete minutos do fim, Stransky deu o chute mais importante de sua vida. "Recebi a bola com precisão, e a chutei com muita suavidade. Ela estava mantendo a linha. Estava girando, mas sem se desviar nem um pouco. Nem olhei para ver se ela passaria por cima. Eu sabia, desde o momento em que saiu da ponta da minha bota, que não ia errar. E fiquei absolutamente extasiado!". Os seis minutos seguintes foram os mais longos da vida de cada sul-africano. Mas o Springboks conseguiu segurar o jogo, e soou o apito final. A África do Sul, pela primeira vez unida e multirracial, era mesmo a campeã mundial de rúgbi.

Um repórter se aproximou de François Pienaar no campo e perguntou: "Qual é a sensação de ter 62 mil torcedores apoiando vocês aqui no estádio?". O capitão do Springboks não poderia ter respondido melhor: "Não tivemos 62 mil torcedores nos apoiando. Tivemos 43 milhões de sul-africanos." A multidão aplaudiu feericamente.

Quando Nelson Mandela, vestido com o uniforme verde-e-dourado, e também com o boné do Springboks, subiu ao pódio para entregar a taça a François Pienaar, a África do Sul chorou. Não restou um rosto seco no Ellis Park. Não restou um rosto seco em todo o país.

"François, muito obrigado pelo que você fez por nosso país", disse Mandela, sua mão esquerda sobre o ombro direito de Pienaar, sua mão direita apertando a do capitão.

"Não, senhor Presidente. Eu que agradeço pelo que o senhor fez por nosso país", respondeu o capitão do Springboks.

O país irrompeu em comemorações, de norte a sul, de leste a oeste. Negros e brancos tomaram as ruas, e festejaram juntos. Celebraram o campeonato mundial, e celebraram o país unido. Comemoraram o heroísmo de Pienaar, e comemoraram o heroísmo de Mandela. Springboks, África do Sul. Um time, um país.

PC

(para ler a história completa desse jogo extraordinário, recomendo a leitura do livro "Conquistando o Inimigo - Nelson Mandela e o jogo que uniu a África do Sul", de John Carlin)

5 comentários:

  1. Sensacional seu post, PC. Mandela eh realmente um fenomeno da humanidade.

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  2. Comentário de Kaká Moura no twitter:
    "Parabéns pelo blog e por esse texto em especial.Mto bom.Saudações tricolores."

    Obrigado a ambos pelos elogios. Esse texto em particular deu muito trabalho. Ler elogios assim é que me motivam a continuar escrevendo.

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  3. É impressionante como a humanidade se deixa levar por idéias absurdas...o Apartheid na África do Sul, a superioridade ariana na Alemanha...
    Mandela certamente foi um dos maiores líderes da história. Faço uma idéia do brilhantismo necessário pra orquestrar uma guinada como essa na vida de um país tão fortemente afetado pelo ódio racial.

    Belo post, às vezes nos surpreendemos reverenciando pessoas sem saber ao certo o que elas fizeram. O texto tbm mostra brilhantemente o caráter humanitário do esporte. Parabéns.

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  4. Obrigado pela narrativa, acabo de assistir o filme Invictus, parece que o roteiro foi tirado de sua excelente narrativa da história e recomendo o filme a todos os apreciadores do Rugby, como eu e principalmente aos politicos brasileiros, para ver se aprendem algo...

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