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sábado, 18 de setembro de 2010

Tudo é Fla-Flu, o resto é paisagem

(por Nelson Rodrigues)

Amigos, ninguém acredita nos profetas porque todo mundo ri do mistério. Negamos tudo o que escapa à nossa pétrea, obtusa e analfabeta objetividade. E no entanto, vejam vocês: - a vitória do Fluminense sobre o Bangu fora profetizada, exaustiva e estrepitosamente, nesta coluna. Há o jogo e vencemos. Imediatamente todo mundo começou a rosnar, pelas esquinas e pelos botecos: - "Coincidência! coincidência!"

Amigos, vamos raciocinar. Uma coincidência prevista deixa de ser, obviamente, coincidência. Domingo, teremos o maior Fla-Flu de todos os tempos. Repito: - tudo é Fla-Flu e o resto paisagem. Está profetizada, com a mesma ênfase e o mesmo descaro, uma nova e definitiva vitória tricolor. E quando, ao soar o apito final, o Fluminense enfiar a faixa, os mesmíssimos idiotas da objetividade vão enxergar no fato uma simples, gratuita e irresponsável coincidência.

Foi assim no pré-diluviano Fla-Flu de 1919. Lembro-me que, naquela época, apareceu, na minha rua, um profeta. Eu teria meus 7 anos salubérrimos. Entre parênteses, o Flamengo vergava ao peso do próprio favoritismo. E o profeta que era um pau-d’água irremediável começou a dizer, de porta em porta: - "O Fluminense vai ganhar! O Fluminense vai ganhar!" Foi assim, de segunda a domingo. Ninguém acreditou no vidente encharcado de cachaça.

Mas aí é que está: - um pau-d’água é também suscetível de mediunidade. Até que chega o domingo do Fla-Flu. Naquele tempo, a cobertura jornalística para o futebol era escassa ou nula. Não havia rádio, não havia nada. Uma notícia levava meia hora para chegar de uma esquina a outra. Pois bem: - e, apesar disso, não se falava senão no Fla-Flu. Era o tema obrigatório, nas farmácias, velórios e sobrados.

E nada descreve a total euforia rubro-negra. Como agora, a torcida flamenga estava certa do triunfo. Preparou-se uma banda. Quando acabasse o Fla-Flu, a "Marcha de Aída" ia soar, de uma ponta a outra da Rua Paissandu. Cada jogador rubro-negro seria levado na bandeja como um leitão assado. Sacos de confetes, caixões de serpentina, corneteiros a cavalo. Ia ser uma apoteose nunca vista, assim na terra, como no céu. E só um sujeito, entre tantos, entre todos, continuava a repetir com uma pertinácia jucunda de bêbado: - "O Fluminense vai ganhar!"

Contra tudo e contra todos, realmente o tricolor enfiou, no rubro-negro, uma de 4 x 0. Lembro-me que Bacchi fez o último "goal" passando a bola por entre as pernas do inexpugnável Píndaro. E mais: - continuou driblando e entrou com a bola e tudo. Entre um Fla-Flu e outro, há a distância infinita, milenar, de quase meio século. E o que importa relembrar é que, também naquela ocasião, houve um Maomé, houve um Moisés, que foi o já citado pau-d’água.

Eis o que nossa admirável burrice não admite: - não há clássico ou pelada que não tenha o seu profeta. Vocês viram domingo, contra o Bangu. Houve um episódio, na batalha, que teria comprometido o nosso triunfo, se não existisse uma profecia irreversível. Refiro-me ao pênalti que Carlos Alberto perdeu.

O nosso zagueiro é um jogador estupendo. Mas o diabo é que o brasileiro está sempre a um milímetro da máscara. E Carlos Alberto achou que não precisava chutar, que bastaria empurrar a bola. Fosse ele um perna-de-pau e eu não estaria fazendo este comentário. Mas um craque merece que lhe digam: - "Rapaz! olha essa mascarazinha!" E de fato, ele pôs em risco mortal a nossa vitória e o nosso campeonato. O que eu queria dizer é que a falta indesculpável de Carlos Alberto fez balançar a profecia. E o Fluminense só resistiu por que está marcado para ser o campeão.

Agora é o Fla-Flu. O profeta, lá na caverna que habita, coçando a sarna que o deleita, vai repetir até domingo: - "Fluminense campeão".

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Os jogos a que Nelson Rodrigues se refere na crônica são:
- Fluminense 4 x 0 Flamengo (finalíssima do Campeonato Carioca de 1919).
- Fluminense 3 x 1 Bangu (penúltima rodada do Campeonato Carioca de 1963).

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O Carlos Alberto que perde o pênalti no Fluminense x Bangu é Carlos Alberto Torres, então um jovem promissor recém-promovido das categorias juvenis. Sete anos depois, ele seria o capitão da Seleção Brasileira tricampeã mundial.

2 comentários:

  1. Nunca havia lido algo escrito pelo Nelson Rodrigues. É realmente espetacular! Pelas suas crônicas, PC, vejo que ele deixou um grandes discípulo!

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  2. Anônimo, obrigado pelo elogio máximo de comparar meus textos aos desse gênio inigualável...

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