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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
O botafoguense e o tricolor
Pelo seguinte: há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. Pergunto: por que vamos ao campo de futebol? Porque esperamos a vitória. Esse otimismo é o impulso interior que nos leva a comprar ingresso e vibrar os noventa minutos. E, no campo, o otimismo continua a crepitar furiosamente. Não importa que o nosso time esteja perdendo de 15 x 0. Até o penúltimo segundo, nós ainda esperamos a virada, ainda esperamos a reação. Pois bem: o torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera precisamente a derrota.
Os outros comparecem na esperança de saborear como um chicabon o triunfo do seu clube. Mas o torcedor do Botafogo é diferente: ele compra o seu ingresso como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer. Eis a verdade: ele não vai a campo ver futebol. O futebol é um detalhe secundário e, mesmo, desprezível. Ele quer, acima de tudo, desgrenhar-se, esganiçar-se, enfurecer-se e rugir contra Ney Franco.
No dia em que retirarem do torcedor alvinegro o inefável direito de sofrer e, sobretudo, o direito ainda mais inefável de descompor o seu técnico, ele ficará inconsolável, como um ser que perde, subitamente, a sua função e o seu destino. Tudo na vida é uma questão de hábito. E o cidadão que padece todos os dias acaba se afeiçoando ao próprio martírio, ou mais do que isso: o martírio torna-se insubstituível como um vício funesto.
E o que falar da torcida do Fluminense? Outras podem ser mais numerosas. Uma torcida, porém, não vale a pena pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão. Exalta-se a torcida do Vasco, exalta-se a torcida do Flamengo, e querem esquecer a nossa. Benício Ferreira Filho dizia que a grande torcida é a do Fluminense. Ele tem razão: nada se compara à flama e à fidelidade do torcedor pó-de-arroz.
Nós, com a nossa crassa e ignara simplicidade, temos a mania de falar em "aristocrático clube das Laranjeiras". E eu vos digo : - "aristocrático" em termos. Será aristocrático porque, no seu quadro social, falta tudo, menos grã-finos. Mas há algo mais no Fluminense, algo mais do que a aristocracia que lhe atribuem. Mais exato seria dizer que ele é o clube de todas as classes.
Sim, amigos: há de tudo em Álvaro Chaves. Vocês querem tubarão? Afirmo-vos que os há de todos os tipos. Desde o tubarão de borracha, o tubarão de piscina, que as crianças cavalgam, até o tubarão mesmo, de insaciável voracidade. Costumamos desprezar o cartola. Mas vamos e venhamos: com o seu charuto afrontoso e ultrajante, a conspurcar de cinza todos os tapetes, ele tem o seu charme. Sim, no Fluminense, há cartolas em penca. Vocês querem o príncipe? É o que não falta no Fluminense. Esse grã-finismo autêntico é meio gostoso de se ver. Há também a família da classe média, a mocinha linda, o pai, a mãe, com os seus escrúpulos severos.
Nada, porém, é tão impressionante como o pé-rapado do Tricolor. Amigos, o Fluminense, com toda a sua aristocracia, têm na sua torcida, uma plebe que eu chamaria de épica. É uma multidão que o acompanha, com ululante fidelidade. Jogue o Fluminense com o Real Madrid ou com o Tabajara, e lá estarão esses heróis de pé descalço. Como são formidáveis ao empunhar a tocha do entusiasmo tricolor! Mas eu falei em pé-rapado. Para mim, não existe o pé-rapado, o borra-botas. O que existe é o homem, o ser humano, a levar nas costas, como o peixe da Emulsão de Scott, uma alma imortal. Um homem é sempre igual a outro homem.
Mas como eu ia dizendo: chamemos convencionalmente a plebe tricolor de plebe mesmo. É uma gente gloriosa, que não larga o clube, chova ou faça sol. Com a nossa bandeira erguida aos ventos da vitória, lá vão os pés-descalços atrás do time. Eu acredito que esses mesmos homens, em encarnações passadas, fizeram a Revolução Francesa e derrubaram bastilhas. Amigos, eis a verdade: os campeonatos e as revoluções vivem de paixão. Sem sentimento, não se derruba uma bastilha, nem se levanta um campeonato.
Eu acho profundamente cretina a expressão "plebe ignara". Ignara coisa nenhuma. Nós é que somos os ignaros, os crassos. Falta-nos isso que sobra no suposto pé-rapado, ou seja, a capacidade de vibrar, de se apaixonar, de viver e morrer por uma paixão. A parte mais humilde da nossa torcida é capaz, sim, de perecer pelo time. Nós temos o escrúpulo, o pudor de pular no meio da rua como um índio de Carnaval. A nossa alegria é meio envergonhada, meio arrependida. Mas a chamada plebe se embriaga com o próprio fogo. A vitória sobe-lhe à cabeça. O tricolor popular, na sua pura euforia, é capaz de trocar as pernas e cair, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Sim, amigos, falta-nos, a nós outros, a capacidade de tão violenta embriaguez clubística.
Quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre. Os vivos, doentes e mortos sobem as rampas. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas, e os mortos de suas tumbas. Quarta-feira, o Maracanã receberá dezenas de milhares de fanáticos, dispostos a vencer ou perecer. Será o maior clássico vovô de todos os tempos.
Esse texto foi fortemente baseado nas seguintes crônicas de Nelson Rodrigues: "Sofrer pelo Botafogo" (Manchete Esportiva, 4/8/1956), e "A incomparável torcida tricolor" (Jornal dos Sports, 3/12/1959).
PC
8 comentários:
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ResponderExcluirTricolores e botafoguenses lotarão o Maracanã, os últimos nem tanto (hehe!). Vai ser um grande jogo, o Fluminense vem crescendo e o Botafogo vive uma bela fase. Ainda não entendi de onde o bota tirou o entrosamento. Depois do desmanche total do elenco no fim do ano, o bota montou um time de jogadores desconhecidos, que parecem jogar juntos há algum tempo...se alguém souber me explicar o mistério, por favor. Pode até ser mérito do Ney Franco. E o Flu vem com sede de vitória e conta com um elenco tecnicamente superior, mas ainda não totalmente entrosado, mas ou menos como na semifinal da taça guanabara do ano passado, que infelizmente terminou com derrota Tricolor.
ResponderExcluirMesmo assim confio na vitória do 30 vezes campeão. Que os azarados de plantão apostem no Botafogo!!!
4 volantes e 3 zagueiros contra o Flu? Não f...! hehe...
ResponderExcluirMinoru = botafoguense rugindo contra Ney Franco.
ResponderExcluirhehehehehe!
Vou festejar o teu sofrer, o teu penar!
ResponderExcluirPC, o próximo post vai ser sobre o título do Flu de 1952, né? hehe...
O Fluminense deve ter tido 90% de posse de bola no segundo tempo, mas quantos chutes ele deu? Eu não me lembro de nenhum. Eu entendo um time jogar na retranca em busca do contra-ataque, mas o Botafogo não fazia nenhum! Foi a mesma lenga-lenga contra os Lixos... ô Ney, ô Ney, acorda!
PS: 1, 2, 3, é freguês!
Um botafoguense é um talibã em potencial.
ResponderExcluirO tricolor é o torcedor mais festeiro do futebol, enquanto o dramático botafoguense torce intimamente para ter um bom enterro no dia da festa!
ResponderExcluir“Sempre me defini como uma torcedora light. Mas o Fluminense foi, para mim, uma questão de simpatia. Acho que este tipo de coisa não se explica. Veio na juventude e ficou. O Fluminense tem alguns traços característicos: a sede bonita e sofisticada, a freqüência elitizada, o charme. Mas quando o time entra em campo, é a hora da garra, da força. Frequentei jogos nas Laranjeiras entre os 15 e 18 anos. Os traços do clube combinam com o perfil do torcedor. O botafoguense é o intelectual sofrido. Já o torcedor do Fluminense tem a marca do fair play e da perseverança. Os rebaixamentos foram uma humilhação na alma tricolor. Mas o torcedor tricolor soube esperar sua hora. Agora voltamos a vencer. As vitórias me alegram.” Fernanda Montenegro
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