quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Mané e o Sonho



A necessidade brasileira de esquecer os problemas agudos do país, difíceis de encarar, ou pelo menos de suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria, fez com que o futebol se tornasse a felicidade do povo. Pobres e ricos param de pensar para se encantar com ele. E os grandes jogadores convertem-se numa espécie de irmãos da gente, que detestamos ou amamos na medida em que nos frustram ou nos proporcionam o prazer de um espetáculo de 90 minutos, prolongado indefinidamente nas conversas e mesmo na solidão da lembrança.

Mané Garrincha foi um desses ídolos providenciais com que o acaso veio ao encontro das massas populares e até dos figurões responsáveis periódicos pela sorte do Brasil, ofertando-lhes o jogador que contrariava todos os princípios sacramentais do jogo, e que no entanto alcançava os mais deliciosos resultados. Não seria mesmo uma indicação de que o país, despreparado para o destino glorioso que ambicionamos, também conseguiria vencer suas limitações e deficiências e chegar ao ponto de grandeza que nos daria individualmente o maior orgulho, pela extinção de antigos complexos nacionais? Interrogação que certamente não aflorava ao nível da consciência, mas que podia muito bem instalar-se no subterrâneo do espírito de cada patrício inquieto e insatisfeito consigo mesmo, e mais ainda com o geral da vida.

Garrincha, em sua irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de um segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente que era da origem do poder mágico de seus músculos e pés. Divertido, espontâneo, inconsequente, com uma inocência que não excluía espertezas instintivas de Macunaíma — nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para seduzir um povo que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os santos miraculosos de que necessita no dia-a-dia.

A identificação da sociedade com ele fazia-se naturalmente. Garrincha não pedia nada a seus admiradores; não lhes exigia sacrifícios ou esforços mentais para admirá-lo e segui-lo, pois de resto não queria que ninguém o seguisse. Carregava nas costas um peso alegre, dispensando-nos de fazer o mesmo. Sua ambição ou projeto de vida (se é que, em matéria de Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no papo de botequim, nos prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos filhos, no descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida.

Não sou dos que acusam dirigentes do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em geral, de ingratidão para com Garrincha. Na própria essência do futebol profissional se instalam a ingratidão e a injustiça. O jogador só vale enquanto joga, e se jogar o fino. Não lhe perdoam a hora sem inspiração, a traiçoeira indecisão de um segundo, a influência de problemas pessoais sobre o comportamento na partida. É pago para deslumbrar a arquibancada e a cadeira importante, para nos desanuviar a alma, para nos consolar dos nossos malogros, para encobrir as amarguras da Nação. Ele julga que entrou em campo a fim de defender o seu sustento, mas seu negócio principal será defender milhões de angustiados presentes e ausentes contra seus fantasmas particulares ou coletivos. Garrincha foi um entre muitos desses infelizes, dos quais só se salva um ou outro predestinado, de estrela na testa, como Pelé.

A simpatia nacional envolveu Mané em todos os lances de sua vida, por mais desajustada que fosse, e isso já é alguma coisa que nos livra de ter remorso pelo seu final triste. A criança grande que ele não deixou de ser foi vitimada pelo germe de autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe defesas psicológicas que acudissem ao apelo de amigos e fãs. Garrincha, o encantador, era folha ao vento. Resta a maravilhosa lembrança de suas incríveis habilidades, que farão sempre sorrir a quem as recordar. Basta ver um filme dos jogos que ele disputou: sente-se logo como o corpo humano pode ser instrumento das mais graciosas criações no espaço, rápidas como o relâmpago e duradouras na memória. Quem viu Garrincha atuar não pode levar a sério teorias científicas que prevêem a parábola inevitável de uma bola e asseguram a vitória — que não acontece.

Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.

Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 22/01/1983 (dois dias após a morte de Garrincha, que hoje completa 38 anos)

Um comentário:

  1. Garrincha é um simbolo da brasilidade. Nasceu com o dom, extremamente talentoso. Poucos nas história do futebol trouxe tanto deslumbre ao amante do esporte. VIVA GARRINCHA!

    ResponderExcluir

Regras para postar comentários:

I. Os comentários devem se ater ao assunto do post, preferencialmente. Pense duas vezes antes de publicar um comentário fora do contexto.

II. Os comentários devem ser relevantes, isto é, devem acrescentar informação útil ao post ou ao debate em questão.

III. Os comentários devem ser sempre respeitosos. É terminantemente proibido debochar, ofender, insultar e/ou caluniar quaisquer pessoas e instituições.

IV. Os nomes dos clubes devem ser escritos sempre da maneira correta. Não serão tolerados apelidos pejorativos para as instituições, sejam quais forem.

V. Não é permitido pedir ou publicar números de telefone/Whatsapp, e-mails, redes sociais, etc.

VI. Respeitem a nossa bela Língua Portuguesa, e evitem escrever em CAIXA ALTA.

Os comentários que não respeitem as regras acima poderão ser excluídos ou não, a critério dos moderadores do blog.