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sexta-feira, 30 de julho de 2021

Sobre prorrogações e disputas de pênaltis


Há algumas semanas, a seleção da Itália sagrou-se campeã europeia após derrotar a Espanha na semifinal e a Inglaterra na final, ambas em disputas de pênaltis. Nas duas partidas, houve prorrogação após o empate no tempo normal, mas os tempos extras terminaram sem gols. É um fato que se repete atualmente em todas as competições de alto nível: via de regra, as prorrogações se arrastam em um melancólico 0 a 0 e o vencedor é definido na maluquice da disputa de pênaltis.

Por que as prorrogações são tão chatas e geralmente inúteis? Por que temos a sensação de que os times jogariam por horas sem sair um gol? Por que temos a impressão de que os times desistem de jogar e preferem apostar tudo nos pênaltis? Sempre foi assim?

Prorrogações sempre existiram no futebol. Como em qualquer esporte, quando o jogo termina empatado e precisa haver um vencedor, a ideia natural é continuar a partida. Na final do Campeonato Sul-Americano de 1919, no Estádio do Fluminense, as seleções de Brasil e Uruguai empataram em 0 a 0 no tempo regulamentar. Na prorrogação de trinta minutos, houve novo 0 a 0, com Marcos Carneiro de Mendonça salvando a Seleção Brasileira da derrota com uma defesaça no último lance. Na segunda prorrogação, enfim, Arthur Friedenreich marcou o gol do primeiro título da história da Seleção.

Porém, na década de 1970, um fato mudou para sempre a característica das prorrogações: foi inventada a disputa de pênaltis. Anteriormente, se o empate persistisse na prorrogação, ou ela continuava até sair um vencedor, ou era marcado um jogo extra, ou em umas poucas ocasiões até mesmo havia um cara-ou-coroa para definir o vencedor.

Com a rara exceção dos casos da moedinha, os times continuavam jogando até haver um vencedor. Sem a disputa de pênaltis no horizonte, os times tinham um baita incentivo para atacar, uma vez que essa era a única maneira de vencer. Com a introdução da disputa de pênaltis, isso mudou totalmente.

Pegarei por exemplo o histórico das finais da Copa Europeia, que atualmente chamamos de Champions League. Antes da introdução da disputa de pênaltis, quatro finais terminaram empatadas no tempo normal, e todas elas tiveram gols na prorrogação:
– em 1958, o Real Madrid venceu o Milan por 1 a 0 na prorrogação;
– em 1968, o Manchester United venceu o Benfica por 3 a 0 na prorrogação;
– em 1970, o Feyenoord venceu o Celtic por 1 a 0 na prorrogação;
– em 1974, a prorrogação entre Bayern de Munique e Atlético de Madrid terminou empatada, mas teve dois gols (o Bayern acabou campeão vencendo o jogo extra, dois dias depois).

Após a introdução da disputa de pênaltis, as prorrogações mudaram para sempre, com o 0 a 0 passando a ser o resultado padrão. Nas finais de Champions League, houve 13 prorrogações com possibilidade de disputa de pênaltis, com 11 delas terminando sem gols:
– em 1984, Liverpool e Roma ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 1986, Steaua Bucareste e Barcelona ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 1988, PSV Eindhoven e Benfica ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 1991, Estrela Vermelha e Olympique Marseille ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 1992, enfim, uma prorrogação decidiu a Champions League, com o Barcelona vencendo a Sampdoria por 1 a 0, graças a um golaço de falta de Ronald Koeman a oito minutos do fim;
– em 1996, Juventus e Ajax  ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 2001, Bayern de Munique e Valencia ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 2003, Milan e Juventus ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 2005, Liverpool e Milan ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 2008, Manchester United e Chelsea ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 2012, Chelsea e Bayern de Munique ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis;
– em 2014, uma prorrogação em final de Champions League voltou a ter gol: o Real Madrid venceu o Atlético de Madrid por 3 a 0, com os três gols sendo marcados no segundo tempo da prorrogação;
– em 2016, Real Madrid e Atlético de Madrid ficaram no 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido em pênaltis.

O padrão se repete em outras competições. Na Copa do Mundo, antes da regra prevendo o desempate em disputa de pênaltis, houve três prorrogações em finais, todas elas decididas com gols:
– em 1934, a Itália venceu a Tchecoslováquia por 1 a 0 na prorrogação
– em 1966, a Inglaterra venceu a Alemanha Ocidental por 2 a 0 na prorrogação;
– em 1978, a Argentina venceu a Holanda por 2 a 0 na prorrogação.

Após a introdução da insanidade dos pênaltis, adivinhem...
– em 1994, Brasil e Itália empataram em 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido nos pênaltis;
– em 2006, Itália e França empataram em 0 a 0 na prorrogação, e o campeão foi definido nos pênaltis;
– em 2010, a Espanha venceu a Holanda por 1 a 0 na prorrogação, graças a um gol de Andrés Iniesta a quatro minutos do fim;
– em 2014, a Alemanha venceu a Argentina por 1 a 0 na prorrogação, graças a um gol de Mario Götze a sete minutos do fim.

A Eurocopa, cuja edição de 2020 inspirou este post, curiosamente é a competição em que o padrão não aparece tão claramente. Foram duas finais sem previsão de disputa de pênaltis:
– em 1960, a União Soviética venceu a Iugoslávia por 1 a 0 na prorrogação;
– em 1968, Itália e Iugoslávia empataram em 0 a 0 na prorrogação e decidiram o título em jogo extra dois dias depois, com vitória da Itália por 2 a 0 no tempo normal.

Já com a disputa de pênaltis no regulamento, foram cinco finais com prorrogação:
– em 1976, Tchecoslováquia e Alemanha Ocidental empataram em 0 a 0 na prorrogação, e a campeã foi definida nos pênaltis;
– em 1996, a Alemanha venceu a República Tcheca por 1 a 0 na prorrogação, graças a um gol de ouro de Oliver Bierhoff;
– em 2000, a França venceu a Itália por 1 a 0 na prorrogação, graças a um gol de ouro de David Trezeguet;
– em 2016, Portugal venceu a França por 1 a 0 na prorrogação, graças a um gol de Éder a onze minutos do fim; 
– em 2020, Itália e Inglaterra empataram em 0 a 0 na prorrogação, e a campeã foi definida nos pênaltis.

Nas decisões da Copa Libertadores da América, o padrão aparece com força. Nos duelos sem previsão de disputa de pênaltis, houve três prorrogações, todas decididas com gols (poucas finais iam para a prorrogação porque havia jogos em ida e volta, e o regulamento só previa prorrogação em caso de empate persistindo até no jogo extra):
– em 1966, o Peñarol venceu o River Plate por 2 a 0 na prorrogação;
– em 1973, o Independiente venceu o Colo Colo por 1 a 0 na prorrogação;
– em 1987, o Peñarol venceu o América de Cali por 1 a 0 na prorrogação, graças a um gol de Diego Aguirre no último minuto (embora o regulamento nesta época já previsse disputa de pênaltis, ela não poderia acontecer aqui, uma vez que o América de Cali tinha a vantagem do empate, por ter tido melhor saldo de gols nos dois primeiros jogos da decisão).

Nas finais com prorrogações assombradas pelo fantasma da iminente disputa de pênaltis, adivinhem...
– em 1977, Boca Juniors e Cruzeiro empataram em 0 a 0 na prorrogação, com a definição do título acontecendo nos pênaltis;
– em 1985, Argentinos Juniors e América de Cali empataram em 0 a 0 na prorrogação, com a definição do título acontecendo nos pênaltis;
– em 2008, Fluminense e LDU Quito empataram em 0 a 0 na prorrogação, com a definição do título acontecendo nos pênaltis;
– em 2013, Atlético Mineiro e Olimpia empataram em 0 a 0 na prorrogação, com a definição do título acontecendo nos pênaltis;
– em 2018, o River Plate venceu o Boca Juniors por 2 a 0 na prorrogação, no único caso até hoje em que houve gols no tempo extra "assombrado".

Nesta sexta-feira 30, nas quartas-de-final do torneio de futebol feminino dos Jogos Olímpicos de Tóquio, a Seleção Brasileira perdeu para o Canadá na disputa de pênaltis. Em outro jogo do mesmo torneio, Holanda e Estados Unidos também decidiram a classificação nos pênaltis. Nas prorrogações dos dois jogos, vocês adivinharam, o placar foi 0 a 0. (Como a exceção que confirma a regra, a Austrália venceu a Grã-Bretanha por 2 a 1 na prorrogação.)

Vocês já devem ter percebido que eu detesto a "solução" da disputa de pênaltis, que eu gostaria de ver abolida do futebol. Porém, sempre que eu defendo esta ideia, recebo como resposta: "ah, PC, e qual é a solução? Vai ficar jogando prorrogação até morrer?". Ao que retruco: "sim, vai ficar jogando até sair um vencedor, como acontece em qualquer esporte que se preze". No basquete, no vôlei e no tênis, três esportes campeões de audiência mundo afora, os empates são resolvidos da única maneira razoável: com o jogo continuando. O próprio futebol desempatava seus duelos assim, até os anos 1970. E o vencedor, cedo ou tarde, sempre aparece, ainda que seja por cansaço do adversário - o preparo físico, afinal, faz parte do esporte, não?

Muitos torcedores têm uma sensação enganosa de que, sem a disputa de pênaltis, a prorrogação se estenderia por horas - algo que, espero, já tenham entendido que não aconteceria, como fartamente demonstrado acima. As prorrogações modorrentas só existem exatamente por causa dos pênaltis - são eles que as causam. Antes da existência das disputas de pênaltis, as prorrogações eram o exato oposto de modorrentas: tinham muitos gols e geralmente cumpriam sua função de desempatar o jogo. Nada de jogar "até morrer": prorrogações com horas de duração nunca aconteciam e não aconteceriam, caso a insanidade dos pênaltis deixasse de existir. As evidências demonstram que a prorrogação resolveria rapidamente os jogos, como sempre resolvia no passado.

Que a definição por pênaltis é um outro esporte, que nada tem a ver com o futebol, acho que todos nós já sabíamos. O que tentei demonstrar neste post vai além disso: a disputa de pênaltis não somente é um outro esporte, como também estraga uma boa parte do jogo em si.  Com o fantasma da disputa de pênaltis à espreita, os times ficam receosos em se expor, como que aceitando o destino que está por vir. Afinal, por que atacar e se arriscar a perder, quando há a alternativa dos pênaltis, de decidir tudo brincando desse mini-esporte de chutes a gol, com uma chance de 50% de vitória?

Os empates precisam ser resolvidos com bola rolando, seja em partida(s) extra(s), seja em prorrogações sucessivas (permitindo substituições extras, se for o caso). E, como resta demonstrado aqui, o fim das disputas de pênalti ainda traria o benefício adicional de melhorar o jogo. Testemunharíamos o fim das retrancas, porque a única possibilidade de vitória seria atacar para marcar um gol.

Não há nada mais anti-futebol do que a maldita disputa de pênaltis, essa coisa cruel, essa coisa desumana, esse outro esporte que uma mente perturbada inventou para desempatar o futebol. Roberto Baggio merece os pesadelos que tem com aquele chute pro alto, quando o jogo em si já tinha terminado? Até quando vamos fingir que essa loucura vale a pena?

No dia 5 de dezembro de 1976, Fluminense e Corinthians fizeram a semifinal do Campeonato Brasileiro, diante de 160 mil pessoas no Maracanã. Após empate em 1 a 1 no tempo normal e - adivinhem - 0 a 0 na prorrogação, a Máquina Tricolor foi eliminada na disputa de pênaltis. Sobre isso, escreveu Nelson Rodrigues, com a sabedoria de sempre: "Onde o Corinthians teve sorte foi na cobrança dos pênaltis. A partir dos pênaltis, a competição passa a ser um cara e coroa. O Fluminense perdeu três, não, dois pênaltis, e o Corinthians não perdeu nenhum. Eis regulamento de rara estupidez. Tem que se descobrir uma outra solução. A mais simples, e mais certa, é fazer um novo jogo. Imaginem que beleza se os dois partissem para outro jogo".

Imaginem que beleza...

PCFilho

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