Páginas

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Afinal, "mulambo" é um termo racista?

Nesta semana, começou um movimento em uma das torcidas organizadas do Fluminense, visando à troca de um verso de uma das músicas cantadas na arquibancada. Na canção "Desde pequeno te sigo", a sugestão é trocar a expressão "mulambo imundo" por "volta pro remo". A razão para a mudança é a suposta origem racista do termo "mulambo", usado há décadas, pejorativamente, como uma provocação ao Flamengo pelas torcidas rivais.

"Mulambo é um termo que surgiu na Angola, na época da escravatura, os angolanos vieram para o Brasil, e eles eram chamados de mulambos pelos senhores de engenho, os patrões das fazendas", diz o tweet do perfil É Proibido Remar, compartilhado pela torcida organizada Bravo 52.

No mesmo espírito do que fiz com a origem da palavra "torcedor", fui pesquisar: será que esta é mesmo a origem da palavra "mulambo"? Será que se trata de um termo racista, de fato? Abaixo, o resultado de minhas investigações.

No Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a palavra "mulambo" aparece com as seguintes três definições: "1. Pano que os indígenas de algumas tribos africanas amarram à cintura; 2. Tanga; 3. Farrapo; trapo". Vale também listar as definições que aparecem para "molambo", variante da original: "1. Pedaço de pano, geralmente velho e em mau estado; 2. Roupa velha ou esfarrapada; 3. Pessoa sem iniciativa ou sem determinação".

Um bom texto do escritor Antônio Joaquim de Macedo Soares, publicado na "Revista Brazileira" em 1879, confirma a origem angolana da palavra "mulambo", com o significado "farrapos":
Revista Brazileira, 1879.

Com estas definições, convenhamos, não é possível estabelecer uma origem racista para a utilização atual do termo. Sem dúvida, é um termo depreciativo, mas racista? Só porque a palavra é de origem africana, ou só porque o tal pano era supostamente usado por tribos africanas? Não me parece uma conclusão razoável. Mas vamos mergulhar nos jornais antigos, que é a parte mais divertida.

No fim da década de 1840, há diversas referências no jornal "O Capibaribe", do Recife, a um "partido mulambo" - era um dos apelidos do Partido Nacional de Pernambuco, uma dissidência do Partido Liberal:
O Capibaribe (Recife), 19/08/1848.

Cabe deixar claro que, neste contexto, os termos "partido mulambo" e "mulambada" não faziam referência alguma a negros ou escravos - que, todos sabemos, eram excluídos da sociedade e não participavam da vida política do país.

No dia primeiro de janeiro de 1851, o jornal "O Commercio", de Niterói, publicou um texto com a expressão "espichar o mulambo", que era simplesmente um sinônimo para "morrer" - algo como o atual "bater as botas":
O Commercio (Niterói), 01/01/1851.

Vale notar que a expressão "espichar o mulambo" não dava uma conotação negativa à palavra, nem tinha qualquer ligação com racismo.

Nos jornais das últimas décadas do século XIX e do início do século XX, a imensa maioria das aparições da palavra "mulambo" se dá dentro de um interessante ditado popular: "Por fora muita farofa, por dentro mulambo só". O equivalente atual seria "As aparências enganam". Em 15 de dezembro de 1883, por exemplo, o "Jornal do Commercio", do Rio de Janeiro, utilizou a expressão, ao fazer uma crítica bastante ácida à apresentação artística de uma tal Sra. Villiot:
Jornal do Commercio (RJ), 15/12/1883.

O curioso ditado aparece em dezenas de publicações brasileiras, a partir dos anos 1850. Notemos que, na expressão, o termo não tinha nenhum dos significados listados nos dicionários atuais - era, isso sim, o nome de um prato feito com sobras de carne, que, na comparação com a farofa, não parecia lá muito apetitoso. Na descrição do site NoMinuto.com, "as donas-de-casa aproveitavam as sobras de carne do almoço de toda a semana e processavam os 'fiapos' até se transformarem na carne de mulambo, nome original da receita".

A receita deve ter ganhado o nome "mulambo" devido aos fiapos de carne, que provavelmente lembravam o aspecto dos tais farrapos angolanos.

A pesquisa nos jornais deixa claro e inequívoco que foi com este ditado da farofa que a palavra "mulambo" de fato se popularizou no Brasil, acrescentando enfim um uso depreciativo ao termo (mas novamente, vale observar, sem nenhuma conotação racista).

O caminho percorrido pela palavra "mulambo" parece ter sido o seguinte: primeiro, atravessou o Oceano Atlântico com os escravos vindos de Angola, designando "farrapos"; segundo, infiltrou-se na língua portuguesa-brasileira, como diversas outras palavras de origem africana; terceiro, passou a ter outros significados (dentre os quais o da receita dos fiapos de carne) e a fazer parte de expressões idiomáticas; quarto, popularizou-se definitivamente com a expressão "Por fora muita farofa, por dentro mulambo só"; por fim, graças à fama de tal expressão, passou a ter o atual significado pejorativo.

Além de tudo, vale observar que os próprios flamenguistas já adotaram para si os termos "mulambo" e "mulambada", transformando a gozação das outras torcidas em um símbolo, a exemplo do que os torcedores do Fluminense fizeram com o pó-de-arroz e do que os adeptos do Palmeiras fizeram com o porco:
Bandeira da torcida organizada "Mulambada", do Flamengo.

Resta demonstrado, pois, que o termo "mulambo" não tem origem racista e que, apesar de ser depreciativo, não ofende mais sequer os próprios torcedores do Flamengo. Assim, não há qualquer motivo real para a modificação da letra da canção entoada pelos tricolores nas arquibancadas.

PCFilho

2 comentários:

Regras para postar comentários:

I. Os comentários devem se ater ao assunto do post, preferencialmente. Pense duas vezes antes de publicar um comentário fora do contexto.

II. Os comentários devem ser relevantes, isto é, devem acrescentar informação útil ao post ou ao debate em questão.

III. Os comentários devem ser sempre respeitosos. É terminantemente proibido debochar, ofender, insultar e/ou caluniar quaisquer pessoas e instituições.

IV. Os nomes dos clubes devem ser escritos sempre da maneira correta. Não serão tolerados apelidos pejorativos para as instituições, sejam quais forem.

V. Não é permitido pedir ou publicar números de telefone/Whatsapp, e-mails, redes sociais, etc.

VI. Respeitem a nossa bela Língua Portuguesa, e evitem escrever em CAIXA ALTA.

Os comentários que não respeitem as regras acima poderão ser excluídos ou não, a critério dos moderadores do blog.