O vocabulário do futebol é recheado de termos interessantes, com as mais diversas origens etimológicas. Na Itália, por exemplo, os minutos finais de uma partida são chamados de
"Zona Cesarini", devido a um feito do meia-atacante
Renato Cesarini, que decidiu uma partida da Seleção da Itália contra a Hungria no apagar das luzes (13/12/1931, Itália 3 x 2 Hungria, Campo Torino [Turim]). Na Inglaterra, os fãs do turfe chamavam o melhor cavalo de cada páreo de
"crack horse" - por associação, os melhores futebolistas passaram a ser os
"craques". No Brasil, o meio-campista argentino
Bernardo Gandula, que jogava no Vasco, sempre buscava as bolas que saíam do campo - quando a função passou a ser desempenhada por garotos, o público não hesitou em chamá-los de
"gandulas" (vide meus
posts Estrangeiros no Vasco e
11 termos futebolísticos curiosos utilizados mundo afora).
Quanto à origem da palavra
"torcedor", não há consenso, com duas versões conflitantes. Segundo
Ari Riboldi, autor do livro
"Cabeça-de-bagre: termos, expressões e gírias do futebol", o termo
"torcedor" viria do latim, do verbo
"torquere", que tem os significados originais de
"torcer" (literalmente),
"desvirtuar",
"distorcer",
"adulterar",
"tornar",
"virar",
"torturar" e
"atormentar".
Há também a versão do saudoso jornalista e radialista
Luiz Mendes. Segundo seu relato,
que publiquei aqui pela primeira vez em 2011, as elegantes moças que frequentavam o campo do Fluminense, na rua Guanabara (atual Pinheiro Machado),
"tiravam as luvas e ficavam com as luvas nas mãos, e como ficavam nervosas com o jogo, elas as torciam ansiosamente". Por causa deste comportamento, o escritor tricolor
Henrique Maximiano Coelho Netto teria escrito uma crônica chamando as meninas da arquibancada do Fluminense de
"torcedoras", e o termo posteriormente se espalharia para designar todos os que acompanhavam o esporte.
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Henrique Maximiano Coelho Netto. |
O
site oficial do Fluminense corrobora a versão de Luiz Mendes:
"Pois foi esse importante personagem [Coelho Netto] o responsável pela criação do termo 'torcida', que hoje serve para designar quem simpatiza com este ou aquele clube. Observador atento, Coelho Netto notou que quando o time atacava ou era atacado, as mulheres que compareciam aos jogos, com seus belos e quentes vestidos rendados, num misto de ansiedade, calor e nervosismo, empunhando sombrinhas, torciam suas luvas e lenços encharcados de suor. Em uma de suas colunas após um dos jogos, Coelho Netto chamou essas mulheres de 'torcedoras'. Pronto, estava criado o termo que até hoje é símbolo da paixão clubística. Em seguida, ganhou similar masculino".
Outro dia, minha querida
Ana Rosa Amorim me perguntou se eu sabia onde encontrar essa crônica de Coelho Netto (que, além de ser um torcedor fanático do Fluminense e o pai dos ex-atletas tricolores
Mano e
Preguinho, foi o fundador da cadeira número 2 da Academia Brasileira de Letras). Foi quando me dei conta de que, embora houvesse lido diferentes relatos sobre a crônica, nunca havia topado com o texto original em si. Após algumas horas de conversa com o amigo Google, percebi que, aparentemente, a crônica não estava disponível na internet (meu Deus, o que hoje em dia não está disponível na internet?). Pior: os diversos textos que a citam sequer dizem a data de sua publicação.
Como eu já tinha algumas anotações e arquivos sobre o tema, fui consultá-los. A revista
"Careta" de 4 de novembro de 1916 publicou uma interessante entrevista com uma das já fanáticas
"torcedoras" do Fluminense:
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Careta, 04/11/1916. (clique na imagem para ler melhor) |
A referência mais antiga ao termo
"torcedor" que eu tinha era o trecho de uma reportagem do jornal
"O Imparcial" de 4 de junho de 1913, sobre uma partida entre o Paulistano e a A. A. Palmeiras, que terminou empatada em 2 a 2, e na qual
"todas as torcedoras deixaram o Velódromo nem alegres, mas também nem tristes".
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O Imparcial, 04/06/1913. |
Certamente, portanto, os
"torcedores" já eram assim chamados antes de 1913. De fato: fui pesquisar os arquivos do jornal
"O Paiz", do Rio de Janeiro, e encontrei uma menção, na edição de 10 de maio de 1909, aos
"torcedores do Fluminense" comemorando com entusiasmo o gol de
Hargreaves numa partida contra o Botafogo (09/05/1909, Botafogo 2 x 2 Fluminense, rua Voluntários da Pátria [Rio de Janeiro]):
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O Paiz, 10/05/1909. |
Após mais algumas pesquisas, encontrei uma referência anterior, no
"Correio Paulistano" de 9 de setembro de 1908, relatando a partida da véspera (08/09/1908, São Paulo Athletic 3 x 9 Paulistano, Velódromo [São Paulo]):
"Nesta parte do jogo, maior foi a vantagem do Paulistano, que, visivelmente, brincava com seu fraco adversário, pois que quase sempre que queriam, marcavam para seu team mais um ponto e isto contra a vontade de alguns torcedores".
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Correio Paulistano, 09/09/1908. |
Segui as pesquisas, e consegui voltar mais alguns meses: "O Commercio de São Paulo" noticiou em 25 de junho de 1908 sobre um dos gols da partida da véspera (24/06/1908, Paulistano 3 x 2 São Paulo Athletic, Velódromo [São Paulo]): "Este feito foi coberto de aplausos da parte dos torcedores".
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O Commercio de São Paulo, 25/06/1908. |
Seguindo na pesquisa, novamente nos arquivos de "O Paiz", consegui encontrar uma menção anterior aos "torcedores", assim entre aspas (sinal de que o termo ainda devia ser considerado um neologismo na época). Foi na edição de 27 de junho de 1907, na reportagem sobre o jogo Internacional de Santos x Internacional de São Paulo:
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O Paiz, 27/06/1907. |
Voltando ainda mais nos arquivos de "O Paiz", lá está, na edição de 14 de agosto de 1906, em reportagem sobre uma partida do Campeonato Paulista (12/08/1906, A. A. Palmeiras 3 x 1 Germânia, Velódromo [São Paulo]), a menção a "um nosso amigo, incorrigível torcedor do Palmeiras":
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O Paiz, 14/08/1906. |
Em 3 de junho de 1906, o mesmo jornal "O Paiz" publicou uma coluna sobre futebol, com um trecho em que se utiliza o verbo "torcer": "O Vicente, o Jacques, o Barreto e outros não jogam, mas torcem mais do que 600 mil diabos".
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O Paiz, 03/06/1906. |
Partindo para o tradicional "Jornal do Brasil", encontrei uma utilização ainda anterior do verbo "torcer", fora do contexto esportivo, mas com o mesmo significado ("esperar", "querer", "desejar"). Na primeira página da edição de 25 de fevereiro de 1905, numa espécie de descrição de uma história de teatro, está escrito: "e mestre Feitosa, que tem muito amor ao 'seu', fica torcendo, para que o 'bond' a vir seja um 2ª classe, que então o negócio fica em 200 réis por pessoa".
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Jornal do Brasil, 25/02/1905. |
De acordo com os meus arquivos, o Fluminense realizara somente 21 partidas entre sua fundação (em 21 de julho de 1902) e esse dia 25 de fevereiro de 1905, todas amistosas - e somente 4 no seu campo, na rua Guanabara (atual Pinheiro Machado). Neste ponto da pesquisa, passei a desconfiar definitivamente que a versão de Luiz Mendes e do site do Fluminense sobre a crônica de Coelho Netto, ainda que criativa e divertida, não era verdadeira.
Enfim, acabei com as minhas dúvidas retornando ao sempre útil arquivo de "O Paiz". Em sua edição de 9 de junho de 1894, na seção "Humorismos", o diário publicou o texto que transcrevo abaixo, com a grafia exata da época. A autoria é de J. Guerra (pseudônimo de Urbano Duarte de Oliveira, membro fundador da Academia Brasileira de Letras, tal qual Coelho Netto):
"'Estou torcendo'!
É locução pittoresca, inventada pelo Manoel Joguinho e hoje generalisada, da mesma fórma que o 'Na ponta', o 'Dá sorte' e o 'Quanto quer apostar'.
Um amador de corridas 'torce' para o seu cavallo vencer, embora elle venha em 4º ou 5º logar. O frequentador de frontões 'torce' afim de que o pelotar em que apostou ganhe a quiniela. O comprador de bilhetes de loteria 'torce' para que a machina Fichet componha o seu numero.
A moça solteira 'torce', 'torce', até que certo rapaz louro a namore...
No bond, aquelle sujeito que se senta no ultimo banco 'torce', 'torce', até que a bella visinha da frente lhe lance uma olhadela...
Todos vivemos sempre a 'torcer', no intuito de conseguirmos qualquer coisa.
E a graça é que às vezes essas 'torcidelas', desprendendo certo fluido magnetico mysterioso, attrahem a sorte propicia e debellam o azar.
Conheço um 'sportsman' que obtem constantemente lucro em corridas.
Perguntei-lhe qual o segredo da sua felicidade.
Redarguiu-me convictamente:
– Torcendo!
Effectivamente!
Já tem a cara torcida, o corpo enviezado, os olhos vesgos, de tanto torcer. Não é um homem, e sim uma torcida. Mas ganha dinheiro, garanto-lhes!
Tentando imital-o representei triste figura, sem colher resultado algum.
O animal em que apostei saiu e chegou em ultimo logar, apezar das gatimanhas que fiz. Gemia, espremia, rosnava, retorcia-me, tocava realejo, puxava corda, fechava um olho, zarolhava o outro – nada! O burro sempre firme na bagagem.
Queixei-me ao 'torcedor'.
– Ora! – exclama elle. Você não sabe torcer!... Pensa que isto é escrevinhar em jornal. Coisa muito séria!
– Ah! Nesse caso peço-lhe que me ensine...
– Questão de fé... e fé não se ensina. É preciso saber torcer 'por dentro'...
– Por dentro?!
– Sim! Por dentro! Nas entranhas, nas dobradinhas!
– Vou experimentar!
No pareo seguinte 'torci por dentro', e o meu cavallo ganhou, depois de passar pelos quatro da frente!
Palavra de honra!
Estou agora 'torcendo' para que o amigo F. A. me faça presente de um diccionario Larousse.
Se se realizar a coisa, passo a escrever um tratado sobre a nova sciencia occulta da 'Torcidela', mais importante e proveitosa do que o hypnotismo."
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O Paiz, 09/06/1894. |
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Urbano Duarte de Oliveira, fundador da cadeira 12 da ABL. |
Então, de acordo com Urbano Duarte de Oliveira, o uso de "torcer", "torcedor", "torcida" e demais derivações, com o significado esportivo, de "esperar", "querer", desejar", começou com um tal de Manoel Joguinho. O raciocínio exato do sujeito para dar esse novo significado ao verbo "torcer" permanece um mistério, e provavelmente assim será para sempre. Porém, resta demonstrado que "torcer" e seus vocábulos derivados já tinham o uso, com essa significação, generalizado em 9 de junho de 1894, portanto antes ainda do início da prática frequente do futebol em solo brasileiro.
Assim, o Fluminense Football Club precisa corrigir o conteúdo do seu site oficial e o material da sua sala de troféus, que se equivocam ao ecoar a divertida porém incorreta história.
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Talvez as torcedoras do Fluminense não tenham sido "as primeiras". Mas as mais bonitas e elegantes elas sempre foram e sempre serão... Foto: site oficial do Fluminense. |
PCFilho
Bravo! Bravo!
ResponderExcluir:-)
ExcluirApesar de eu ter feito a "descoberta" deste post de maneira totalmente independente destas fontes, vale registrar aqui dois autores que a fizeram antes de mim.
ResponderExcluirEntre janeiro e abril de 2016, Jean Lauand publicou na Revista Internacional d’Humanitats o artigo Reavaliando a fraseologia I – a origem das expressões: “torcedor”, “bater papo” e “será o Benedito?”. Nele, também transcreve o texto de Urbano Duarte de Oliveira (e mostra um uso ainda anterior do verbo "torcer", em 1888).
Em julho de 2016, o próprio Fluminense publicou o livro "O Fluminense somos todos nós" (no qual eu inclusive assino um texto). Nele, o autor Carlos Santoro também transcreve a coluna de Urbano Duarte de Oliveira, e argumenta que o termo teria caído em desuso, somente se popularizando após Coelho Netto - sem, no entanto, mostrar a suposta crônica original sobre as "torcedoras", cuja existência segue sendo uma incógnita. (Curiosamente, eu tenho esse livro do Fluminense desde sua publicação, mas somente ontem li essa parte, para descobrir que outro bom pesquisador tricolor havia feito a mesmíssima descoberta que eu, um ano antes. Me senti como Leibniz, ao descobrir que Newton já havia desenvolvido o "Cálculo Infinitesimal" que tanto trabalho lhe dera. rsrsrs.)
Seria o tal Manoel Joguinho um parente afastado da Maria Gasolina e do Zé Droguinha?
ResponderExcluirHoje, 8 de março de 2021, o Fluminense voltou a publicar em seu site a história incorreta sobre a origem do termo "torcedora".
ResponderExcluirSinceramente, não entendo a postura, porque o clube já sabe há alguns anos que a história não é verdadeira.
Maravilhoso esse artigo! Obrigada!!
ResponderExcluirPor nada. Fico feliz que tenha gostado. :)
ExcluirExcelente. Também me espanta a falta de republicações das crônicas futebolísticas de Coelho Netto. Algumas foram republicadas por Mauro Rosso em "Lima Barreto versus Coelho Neto: um Fla-Flu literário". Mas a suposta crônica em que ele teria falado disso não está lá. Também podemos cogitar a hipótese de ele não ter publicado, mas espalhado em conversas com torcedores, dirigentes e jornalistas, já que freqüentava muito o estádio e os salões do tricolor.
ResponderExcluirGostei de ver que o fato de você torcer pelo Fluminense não o fez ocultar o que descobriu, para distorcer a História. Ao contrário de tantos "distorcedores" que insistem em alimentar os velhos mitos do gigante da colina. A cada anônimo (como eu) que os desmente, um batalhão de deformadores de opinião continua repetindo-os bovinamente.
Quanto ao raciocínio exato do Manoel Joguinho, realmente, nunca saberemos. Mas o do interlocutor do cronista (talvez aprendido com o tal sr. Joguinho) está salvo: é torcer as entranhas em aflição. Não recomendável após uma feijoada.
Numa tarde de domingo, torcer é prática de qualquer coração futebolístico. E na leitura deste blog, percebi inúmeras possibilidades para justificar o fato do Fluminense "não corrigir no seu site" a versão original da palavra. No nosso hino, ser tricolor de coração, fala de torcer nas entranhas. Na etimologia, a origem "distorcer", permite, também, que este coração tricolor seja fiel às interpretações que melhor atendam ao seu "tum-tá-tá".
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