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sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

A origem da expressão "Há coisas que só acontecem com o Botafogo"


"Há coisas que só acontecem com o Botafogo". Neste Campeonato Brasileiro de 2023, talvez como nunca antes, essa expressão folclórica do nosso futebol ganhou força. Afinal, o clube de General Severiano, mesmo com uma distância abissal na liderança para os concorrentes, entrou numa crise deslumbrante e aparentemente vai perder a taça mais ganha de sua história.

Esta semana, minha querida Ana Rosa Amorim, em sua admirável curiosidade, veio me perguntar sobre a origem deste ditado popular do futebol carioca (foi ela também que me instigou a buscar a etimologia da palavra "torcedor", lá em 2017 - vide meu texto da época). Eu não sabia responder, então fui à pesquisa.

Meu ponto de partida, indicado pela própria Ana Rosa, é um baita texto de Paulo Mendes Campos sobre o Botafogo (leia aqui), publicado no Diário Carioca em 1957 e republicado na revista Manchete em 1962: "Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho". Ele se refere ao jogo de 29 de setembro de 1957, em que o Fluminense venceu o Botafogo por 1 a 0, graças a um gol de Escurinho (e a uma defesa de Castilho em pênalti cobrado por Didi). Segundo algumas fontes (vide notícia recente no jornal português A Bola), seria esta crônica a origem da expressão.

Descobri que não é. Ainda em 14 de julho de 1955, mais de dois anos antes do gol de Escurinho, o próprio Diário Carioca publicou a coluna "As orelhas ardem", assinada pelo pseudônimo Super XX (que hoje sabemos ser do jornalista Everardo Guilhon), em que ele relata um encontro com Carlito Rocha, dirigente do clube na época: "Respirou bem fundo e arrematou com classe: "... há coisas, seu Super XX, que só acontecem com o Botafogo..." (Desde aí passei a acreditar no velho "slogan")". Vemos que a expressão não só já existia, como já era "um velho slogan" do Botafogo.
Diário Carioca, coluna "As orelhas ardem", 14/07/1955.

Também o jornal O Poti, do Rio Grande do Norte, em 17 de agosto de 1956, cita a frase na coluna "Esportes em dia" e atribui sua autoria a Adhemar Alves Bebiano, outro célebre dirigente do Botafogo nos anos 1940 e 1950, presidente do clube entre 1944 e 1946: "Está valendo a célebre frase de Ademar Bebiano: "Há certas cousas que só acontecem com o Botafogo". Esta é a verdade...".
O Poti, coluna "Esportes em dia", 17/08/1956.

Então vamos para a década de 1940. A revista Esporte Ilustrado de 6 de novembro de 1947, no relato da terceira rodada do returno do Campeonato Carioca daquele ano, escreveu assim: "O torcedor alvinegro, postado perto de nós, em São Januário, o torcedor que não quis enfrentar a crise de transporte para ir ver seu clube jogar em Olaria, exclamou entredentes: "Há coisas que só acontecem ao Botafogo. Receber assim duas tijoladas". E completou ante o espanto de um outro: "Foi a Olaria e caiu... E de Olaria sobrou um "tijolo" para barrar o passo do Bonsucesso, empurrando o Vasco..."". É uma referência às partidas Olaria 3 x 2 Botafogo (Rua Bariri) e Vasco 3 x 0 Bonsucesso (São Januário), ambas disputadas em 01/11/1947. Portanto, a expressão já era usada em 1947, dez anos antes do gol de Escurinho...
Esporte Ilustrado, 06/11/1947.

Meses antes, uma das manchetes da primeira página do Jornal dos Sports de 17 de junho de 1947 dizia: "Coisas Que Só Acontecem Ao Botafogo". O texto, sobre a partida de 15 de junho de 1947, Fluminense 6 x 4 Botafogo, atribui a autoria da frase a dois novos personagens: ""Há coisas que só acontecem ao Botafogo". Essa frase, que já se tornou célebre no football carioca, pertence ao nosso companheiro "Zé de S. Januário", mas este já a atribuiu ao Sr. Gastão Soares de Moura Filho. Na realidade, está muito bem aplicada à falta de "chance" que vem perseguindo o alvinegro nos últimos anos. É o grêmio dos imprevistos". Gastão Soares de Moura Filho, dirigente do Fluminense, seria o autor da expressão, afinal?
Jornal dos Sports, 17/06/1947.

Lá fui eu procurar pelo tal "Zé de S. Januário" (pseudônimo do jornalista vascaíno Álvaro do Nascimento Rodrigues, que escrevia no próprio Jornal dos Sports) e encontrei uma grata surpresa: a expressão no princípio era mais ampla, não se referindo somente ao Botafogo, mas também ao Vasco!

Em 13 de junho de 1943, o Fluminense terminou o primeiro tempo vencendo o Vasco por 3 a 0, em partida válida pelo turno do Campeonato Carioca, no Estádio de Laranjeiras. Alegando que havia sido prejudicado pelo árbitro Mário Vianna, o Vasco não voltou ao gramado para jogar a etapa final. No dia 27 de junho, "Zé de S. Januário" escreveu uma coluna sobre o acontecido. "Já no automóvel, quando nos dirigíamos para a Praia de Botafogo, acendi o meu Pauli-Poli e disse ao meu compadre Vargas Netto: Só agora compreendo as palavras do Gastão Soares de Moura - "há coisas que só acontecem com o Vasco e o Botafogo"...".
Jornal dos Sports, coluna "Uma pedrinha na shooteira", 27/06/1943.

Faz todo o sentido: Vasco e Botafogo viviam uma crise impressionante à época, vendo os rivais Fluminense e Flamengo dominarem o cenário do futebol no Rio de Janeiro: nos nove Campeonatos Cariocas entre 1936 e 1944, o Fluminense conquistou cinco (1936, 1937, 1938, 1940 e 1941) e o Flamengo quatro (1939, 1942, 1943 e 1944). O nome do Vasco sumir da "maldição" nessa época também se encaixa com os fatos, porque o clube de São Januário foi campeão em 1945 e 1947. Havia coisas que só aconteciam ao Vasco e ao Botafogo, mas o Vasco já estava levantando campeonatos de novo, o Botafogo ainda não.

O Botafogo até foi campeão em 1948, o que talvez fosse suficiente para enterrar a frase nos jornais do passado. Porém, o clube de General Severiano voltaria a encarar um jejum brabo nos anos seguintes, só voltando a levantar o caneco em 1957, ano em que começamos nossa conversa, lá em cima. Certamente foi tempo suficiente para o lema voltar a ganhar força.

Como não encontrei referências anteriores a 1943, concluo a pesquisa assim. A expressão, originalmente "há coisas que só acontecem ao Vasco e ao Botafogo", foi cunhada por Gastão Soares de Moura Filho, dirigente do Fluminense, na primeira metade dos anos 1940. Era uma referência à crise vivida por Vasco e Botafogo, que não conseguiam competir em pé de igualdade com Fluminense e Flamengo, naqueles anos. Como em 1945 o Vasco enfim quebrou a maldição e voltou a ser campeão, foi cortado da expressão, que passou a dizer que "há coisas que só acontecem com o Botafogo", somente. Um lema que, para terror da torcida botafoguense, parece estar em sua máxima expressão em 2023...

PCFilho

2 comentários:

  1. Ótima e esclarecedora pesquisa. O que ninguém esclarece é porque essas coisas só acontecem com o Botafogo.

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    Respostas
    1. Será que não é uma profecia que se auto-realiza?

      Essas coisas só acontecem com o Botafogo justamente porque acreditamos que essas coisas só acontecem com o Botafogo...

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