segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Humildade, a nossa arma

Nesta semana, o Fluminense enfrentará Atlético Mineiro e Cruzeiro. Uma semana assim provoca uma funda nostalgia no coração de um tricolor. Explico: é impossível não se lembrar do quadrangular final do Campeonato Brasileiro de 1970.

Aqui no Jornalheiros, passaremos a semana a recordar aqueles maravilhosos sete dias que consagraram o Fluminense como campeão do Brasil.

A imprensa não dava muita bola para o Tricolor. Apesar do bom começo de campeonato do Fluminense, os favoritos para a classificação ao quadrangular eram Palmeiras, Atlético, Cruzeiro e Internacional. Mas o Fluminense acabou chegando, e o Internacional ficou de fora.

Assim, naquela semana, Cruzeiro, Atlético, Palmeiras e Fluminense decidiriam o Campeonato Brasileiro. O Fluminense era o menos cotado pela imprensa. É o que exibe a crônica de Nelson Rodrigues, publicada em "O Globo" de 11/12/1970, que transcrevo aqui, por sugestão do leitor André Ruiz.

Divirtam-se com a magnífica leitura!

PC

Humildade, a nossa arma

Amigos, cabe agora ao Fluminense fingir-se de morto. Os outros que disputem e estraçalhem o favoritismo. Vejam todo o esplendor do Cruzeiro. Telefonam para mim: - "O Cruzeiro já ganhou!". Há os veementes: - "O Cruzeiro é um escrete!". Eu ouço e calo. Ou por outra: - ouço e concordo, da boca para fora.

Não há mais nada que impressione tanto um futebol como uma virada. E vamos e venhamos: o Cruzeiro começou mal o Gomes Pedrosa. Jogou com o Fluminense e perdeu para o Fluminense. Naquela ocasião, os jornais punham nas nuvens o meu Tricolor. Mas o Cruzeiro é um time que tem um Tostão, tem um Dirceu Lopes. Deu uma bela virada. Ainda ontem, numa roda de colegas, fiz a pergunta: - "Quem ganha o Robertão?". Éramos uns cinco ou seis. Houve uma unanimidade feroz: - O Cruzeiro.

E todo mundo, ali, pôs-se a entoar hinos ao time do Tostão. Era o melhor do Brasil. Houve um momento em que, do fundo de minha timidez, ousei a pergunta: - "E o Fluminense?". A resposta foi uma gargalhada. E, então, um dos presentes tratou de demonstrar o que lhe parecia ser uma verdade inapelável e eterna: - o Tricolor não tem um craque, um único craque. Pode ser uma equipe certa, mas lhe falta essa figura rigorosamente imprescindível que é o craque.

A discussão durou três horas e teve momentos sublimes. A tese vencedora foi a seguinte: - se um time tem dez pernas-de-pau, e um craque, está salvo. A presença solitária e formidável faz o grande time. Ao passo que o Fluminense fica no nível do bom jogador. Vocês sabem que venho de uma doença seriíssima que foi, sem exagero, um massacre. Portanto, ainda reajo com a doçura do convalescente. Desta vez, porém, perdi a paciência: - "o Fluminense não tem craques? E o Denilson, o 'Rei Zulu'? E Félix, que a crônica européia considerou um dos maiores goleiros do mundo? Há quem diga: - 'Eu não considero Denilson craque'. Se o Rei Zulu não é craque, quem o é? E Marco Antônio?". Na discussão, um dos presentes afirmou: "Marco Antônio não é craque!".

A ser verdade o que disseram os colegas, o Fluminense está órfão de qualquer chance no Robertão. Mas vejam como as nossas últimas atuações modificaram a posição crítica em relação ao Fluminense. Tínhamos uma cotação esplêndida; os mais exigentes acharam que éramos uma força do Gomes Pedrosa. Todavia, na fase da classificação, o time começou a falhar. Não nego que várias atuações nossas chegaram a ser ridículas.

Lembro-me de uma partida, em que o Francisco Pedro do Couto, pó-de-arroz como eu e doente como eu, dizia-me: - "mas isso não é Fluminense, nunca foi o Fluminense". Era o anti-Fluminense com a nossa camisa. Logo os tricolores pessimistas começaram a resmungar, sinistramente: - "Estamos liquidados!". Para muitos, a classificação era impossível. Um dos nossos imparciais veio me dizer: - "O Atlético devia ter ganho!". Afirmava isso de olho rútilo e lábio trêmulo. Achei esse derrotismo tão patusco que exumei uma gíria antiga: "Sossega, leão".

Mas o que eu quero dizer é que o Fluminense está numa situação ideal. Ninguém acredita nele. Negam-no da cabeça aos sapatos. Mundiais como Félix, Denilson, Marco Antônio passam por cabeças-de-bagre. Ao passo que o Cruzeiro, o Atlético e o Palmeiras estão montados na promoção. Há sujeitos que gemem de mãos postas: - "A regularidade do Palmeiras!". Por outro lado, há os que acreditam no Atlético. Só o Fluminense é desprezado por gregos e troianos.

E é bom, repito, que assim seja. Quem tem que apresentar um grande futebol e fazer tabelinhas geniais? Imaginem a responsabilidade do Cruzeiro, Atlético, Palmeiras, tendo que ser geniais de dez em dez minutos. O Fluminense vai correr livremente. Segundo afirmam, não tem um único craque. Se é uma antologia de pernas-de-pau, está numa situação confortabilíssima. Pode fazer tudo, inclusive ganhar a Taça de Prata.

Nelson Rodrigues, O Globo, 11/12/1970.

4 comentários:

  1. É esse espírito que o Andrade vem impondo ao time do Flamengo. Ninguém dava nada por nós, e agora estamos ali, coladinhos nos líderes. Seria tão bom ficar ali em quinto até a última rodada e, no apagar das luzes, dar o pulo do gato. Sem os holofotes da mídia atrapalhando a caminhada...

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  2. Que crônica do sábio profeta!
    Com o Flu é sempre assim...

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  3. É o espírito que todo time deveria ter! E vamos ganhar do Galo e do Cruzeiro.

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