terça-feira, 16 de setembro de 2014

O esqueleto vascaíno



Amigos, continuo interessadíssimo na alegria vascaína. Alegria tão santa e tão vasta que sozinha daria para umedecer, para orvalhar a aridez de três desertos. Conheço um vascaíno que está morre, não morre. Vive no fundo de uma cama. Seu corpo é um esqueleto, com um leve, muito leve revestimento de carne. E só imagino a frustração dos vermes que não vão ter carne para roer.

Pois bem. No domingo, ele requisitou o rádio de pilha para ouvir o clássico. Claro que o moribundo esperava, com sombrio fatalismo, mais um banho. Mas passava o tempo, e o Vasco, em vez de se entregar, ventava fogo por todas as narinas. Até que sai o gol de Célio, ou melhor dizendo, o gol contra de Altair. Então aconteceu o seguinte: - em seu leito de agonia, quase defunto, dava arrancos triunfais de cachorro atropelado. E, súbito, houve o milagre. Pela primeira vez, na história de São Januário e do mundo, um esqueleto, uma caveira, uma ossada ergueu-se numa cama e entoou: - "Casaca! Casaca! A turma é boa! É mesmo da fuzarca! Vasco! Vasco! Vasco!".

Uns quinze minutos depois, estava o ex-agonizante numa euforia medonha. A um vizinho que tentou insinuar uma restrição à vitória cruzmaltina replicou, numa ira soberba: - "Te quebro a cara!". E como o outro insistisse, ele já queria beber-lhe o sangue. Pois bem. Eis o que eu queria dizer: - o que houve domingo foi, mais que uma vitória, uma ressurreição.

Sim, o Vasco era um clube que vivia das rendas do passado. Todas as suas vitórias pareciam mais antigas do que o assassinato de Pinheiro Machado ou as esporas do Kaiser. Mas a verdade é que nenhum clube pode viver de vitórias defuntas. Daí o impacto deslumbrante do 1 x 0. Pode parecer que um único e escasso gol era pouco para a fome cruzmaltina. Engano. Bastou o tento de Célio para que o clube acordasse de sua pavorosa agonia. As suas taças - que pareciam gelar num necrotério de relíquias - tomaram-se de uma súbita flama.

Hoje, o seu nome está em todas as bocas. Nas esquinas e nos botecos, nas farmácias e nos velórios, há quem negue ou exalte os seus feitos. O Vasco entra, em toda parte, atirando suas patadas épicas, em todas as direções. É uma presença viva no campeonato. E os paus-d'água caem na sarjeta - abraçados ao seu nome e à sua legenda.

E ninguém se lembra do Fluminense. Rola por toda Álvaro Chaves um silêncio ensurdecedor. Sabemos que esquecemos depressa os defuntos e os derrotados. Ontem mesmo eu referi o caso da viúva que enterrou o marido e, quinze minutos depois, vinha para a porta lamber um sorvete de casquinha. O sorvete ainda não foi nada. O pior é que, no fim, ainda comeu a casquinha.

Adotamos um pouco o cinismo da citada viúva diante dos vencidos. Olhem a cidade depois do 1 x 0. Todo mundo lambe o sorvete e come a casquinha ante a catástrofe tricolor. Mas há na derrota uma compensação, uma inteligência, uma sabedoria. Repito: - o sujeito pode folhear uma derrota como se fosse a Bíblia. Pois nós estamos lendo o bíblico 1 x 0 que desabou sobre Álvaro Chaves. E quem nos diz que apanhamos domingo para não perder nunca mais?

(Nelson Rodrigues, em 16/09/1964, sobre o jogo Vasco 1 x 0 Fluminense, três dias antes, pelo Campeonato Carioca daquele ano. O Tricolor ainda perderia mais dois jogos, para o Bangu e o Botafogo, mas terminaria a temporada gloriosamente, vencendo o Bangu por 3 a 1, e sagrando-se Campeão Carioca daquele ano.)


Ficha Técnica
13/09/1964 - Vasco 1 x 0 Fluminense - Maracanã (Rio de Janeiro)
Motivo: Campeonato Carioca de 1964 - Turno.
Público: 49.288.
Renda: Cr$ 22.586.384,00.
Árbitro: Eunápio de Queiroz.
Vasco: Ita; Joel, Caxias, Fontana e Barbosinha; Maranhão e Lorico; Mário, Célio, Saulzinho e Da Silva. Técnico: Eli do Amparo.
Fluminense: Castilho; Carlos Alberto Torres, Procópio, Altair e Nonô; Oldair e Denílson; Amoroso, Evaldo, Ubiraci e Mateus. Técnico: Tim.
Gol: Célio, aos 20' do 1º tempo.

PCFilho

6 comentários:

  1. Depois deste delírio de inspiração, vou dormir para ter sonhos arrebatadores!

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  2. Esse cara conseguia ser genial a cada sentença. Coisa de louco!!!

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  3. MEMORIAS: A MENINA SEM ESTRELA
    Autor: Nelson Rodrigues

    Publico pequeno... 50 mil só??

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  4. Leandro,

    O jogo era de primeiro turno, e o Vasco estava mal das pernas. Acho que o público esperado era esse mesmo.

    O Campeonato pegaria fogo mesmo no segundo turno. O Fla-Flu (3 x 3), se minha memória não falha, levou 136.000 ao Maracanã. No jogo do título, contra o Bangu, foram 75.000.

    Mas sobre públicos é sempre melhor ouvir o Alexandre. hehehe. :)

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  5. Todos esses públicos conhecidos de 1964, PAGANTES, fora os bicões, algo 60.000 PRESENTES nesta partida contra o Vasco.

    Muito POUCO para os padrões de um clássico envolvendo duas torcidas como as de Fluminense e Vasco nesta época.

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