Domingo, dez para as nove da manhã.
O menino, então com sete, oito, nove anos, é acordado pela doce voz maternal:
- Filho, filho, acorda, vai começar a corrida.
A preguiça infantil logo é deixada de lado. É a hora de ligar a televisão e ver um ídolo em ação: Ayrton Senna da Silva, Ayrton Senna do Brasil.
O ritual descrito se repetia em todo domingo de corrida. Não apenas no lar deste escriba, mas também nas casas de milhares, de milhões de brasileiros. O país inteiro parava para assistir a Senna. Era uma inconfundível comoção nacional, semelhante ao que se vê em jogos de Copa do Mundo.
Foi assim na manhã dominical de 11 de abril de 1993. Chovia torrencialmente em Donington Park, pista na qual se realizaria o Grande Prêmio da Europa. Era tanta água que, hoje, provavelmente nem teríamos a largada. Se tivéssemos, seria sob o carro de segurança. Outro detalhe: nunca antes houvera uma corrida de F1 em Donington Park, sob a alegação de que a pista não apresentava pontos de ultrapassagem.
Vamos aos fatos daquele domingo: Senna largou da quarta posição, e ainda na reta caiu para quinto. A primeira ultrapassagem foi sobre um jovem piloto alemão, um tal de Michael Schumacher, da Benetton. Estava retomada a quarta posição.
À frente de Senna, agora estava o austríaco Karl Wendlinger. Mesmo com visibilidade próxima de zero, num asfalto encharcado, o brasileiro faz uma manobra ousadíssima, ultrapassando pela direita numa curva para a esquerda.
Dois já haviam ficado para trás, mas ainda havia dois à frente. E não eram dois pilotos quaisquer: Damon Hill e Alain Prost pilotavam as Williams, disparados os carros mais velozes da Fórmula 1 em 1993. A McLaren de Senna era, mal comparando, um velocípede atrás de duas motocicletas.
Mas, na chuva, Senna crescia, se tornava um gigante, absolutamente imbatível. Demonstrando uma garra inexcedível, o brasileiro partiu para cima de Hill. Segundos depois, em uma curva para a direita, o inglês ficou para trás.
À frente de Senna, só restava Prost, conterrâneo de Napoleão, o único piloto daquele tempo que conseguia competir em igualdade com o brasileiro. Mas, na chuva, Prost sentia-se guiando sobre sabão, enquanto Senna parecia brincar de autorama. A ultrapassagem final se deu em outra curva à direita, essa em formato de U. Ainda na primeira volta, Ayrton já era o líder. Dali em diante, Senna simplesmente desapareceu na frente dos outros pilotos. Ninguém o viu mais. Desconfio que estão procurando aquela McLaren até hoje. (o brasileiro terminou a corrida uma volta à frente de Damon Hill, que chegou em segundo)
Hoje, 21 de março de 2010, Senna estaria completando cinquenta anos de idade. Não está porque, em outra manhã dominical, uma curva o transformou em mártir. A última morte da história da Fórmula 1 foi a mais dolorosa, a mais insuportável. Naquele primeiro de maio de 1994, a nação inteira desabou em lágrimas. Aos 34 anos, morria Ayrton Senna, após uma violenta batida em Imola.
À noite, aquela mesma doce voz maternal, embargada, tentava consolar o menino: - É, filho, não vamos mais ouvir o tema da vitória aos domingos... Foi quando, abraçado pela mãe, aquele menino chorou copiosamente. Como chora agora.
PC
Vídeo das primeiras voltas da corrida de Donington Park:
Classificação final do GP da Europa de 1993:
1) Ayrton Senna (Brasil) - McLaren-Ford / 1:50:46.570
2) Damon Hill (Grã-Bretanha) - Williams-Renault / + 1:23.199
3) Alain Prost (França) - Williams-Renault / + 1 volta
4) Johnny Herbert (Grã-Bretanha) - Lotus-Ford / + 1 volta
5) Riccardo Patrese (Itália) - Benetton-Ford / + 2 voltas
6) Fabrizio Barbazza (Itália) - Minardi-Ford / + 2 voltas
7) Christian Fittipaldi (Brasil) - Minardi-Ford / + 3 voltas
8) Alessandro Zanardi (Itália) - Lotus-Ford / + 4 voltas
9) Érik Comas (França) - Larrousse-Lamborghini / + 4 voltas
10) Rubens Barrichello (Brasil) - Jordan-Hart / + 6 voltas
11) Michele Alboreto (Itália) - Lola-Ferrari / + 6 voltas
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Senna ergue o troféu da vitória em Donington Park, 1993. |
Como sinto falta daquelas manhas de domingo, onde acordávamos cedo para ver nosso super-herói voando. Ele não voava usando uma capa vermelha, sobre a cidade. Ele voava dentro de um carro, rasgando retas de chegada e fazendo curvas, desafiando todos os limites. E sem dúvidas era um carro, cheio de passageiros, pois além dele, transportava todos os seus fãs, que não aumentavam o peso, mas sim a potência do motor. Saudades do Senna, muitas saudades.
ResponderExcluirGÊNIO.
ResponderExcluirO mais legal de tudo é saber que muitos não fazem apologia ao Senna apenas após sua morte, "prá parecer descolado, fã", essas coisas.
A idolatria existia sim. Senna era "um jogo de Copa do Mundo" todo domingo.
Faz falta. Mesmo hoje, que estaria com 50, faz falta.
Bela homenagem ao gênio do automobilismo.
ResponderExcluirPC PC... Não se começa um texto assim cara... Assim você quebra qualquer um...
ResponderExcluirObrigado a todos pelos comentários. :)
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Comentários no orkut.
Meu caro escriba, sempre assisti a F1 como que assite um programa qualquer por falta de opção. Isso mudou naquele domingo em Mônaco em que um brasileiro que até então eu desconhecia, apareceu pilotando uma Toleman e sem muita badalação foi levando seu carro até que ... começou a chover. A partir daí o cara começou a dar show e não fosse uma atitude no mínimo suspeita (como tantas outras que vimos posteriormente) o diretor de prova considerou a corrida interrompida uma volta antes dele ultrapassar Alan Prost e assim adiar para Portugal a primeira vitória, também na chuva, desse inesquecível, insuperável, inigualável piloto. A partir daquele domingo em Mônaco meus domingos nunca mais foram os mesmos. Meus dois cunhados eram torcedores do Nelson Piquet e criticavam o arrojo do Senna falando que ele jamais chegaria aos pés do Piquet. Passou da cabeça. Uma saudade que ficou e que dificilmente será esquecida. Senna Vive!!!
ResponderExcluirHaertel
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Você foi um dos milhares que Senna fez apaixonar pelo esporte...
Cara, não consigo achar outra palavra pra esse texto que não seja: PERFEITO!
ResponderExcluirA saudade dele é um sentimento que não cicatriza...Após todos esses anos,a dor pela ausência dele ainda é imensa...Como fã desse grande herói, te agradeço por seu belíssimo e tocante texto! Parabéns!!!
sem palavras... Senna eterno!
ResponderExcluirhimpar, obrigado pelo elogio. O texto pode até estar perfeito, mas nesse caso o mérito é muito mais do inspirador que do autor. :)
ResponderExcluirAcho curioso como a (indiscutível) habilidade do piloto Ayrton Senna contamina de forma quase unânime qualquer avaliação sobre o (discutível) caráter do homem Ayrton Senna.
ResponderExcluirEle foi um vencedor nato (apesar de não ter tido a capacidade de manter-se vivo), mas foi realmente nosso maior exemplo de esportividade e conduta? Por que as duas coisas sempre se misturam?
Marcelo,
ResponderExcluirNão me considero apto a avaliar o caráter do Ayrton, porque não convivi com ele.
Porém, exemplo de esportividade e superação, ele de fato era (e ainda é). Sabe por que ele corria tão bem na chuva? Após uma derrota na infância, em pista molhada, ele passou a treinar sempre que chovia em São Paulo. Não conheço exemplo parecido de tamanha lição pós-derrota.
Quanto ao lado da caridade, já soube de fontes confiáveis que ele fazia muitas e generosas doações anônimas, fazendo questão que seu nome não fosse divulgado. Pode não ser prova de um caráter perfeito, mas já o posiciona acima da média.
(assim como o Instituto que ele fundou meses antes de morrer)
Meu amigo tricolor Léo me escreveu: "Esse cara, pela garra, pela gana, pela honestidade... tinha o perfil fidalgo de um verdadeiro tricolor."
ResponderExcluirSou obrigado a concordar com ele. De fato, o Senna tinha o perfil de um tricolor legítimo.
Aliás, vejam só que coincidência:
- ele nasceu no dia seguinte a uma grande vitória tricolor (7 x 2 no SPFC, Rio-SP de 1960).
- ele morreu dois dias após outra grande vitória tricolor (7 x 1 no Botafogo, Carioca de 1994).
:)
OK, não faz sentido realmente criar polêmica tanto tempo após a sua morte. Mas a tendência natural é essa, lembrar das coisas boas e esquecer os momentos ruins, pouco esportivos, as "escorregadas". Que ele era uma pessoa extremamente competitiva em tudo, isso é notório. Chova ou faça sol.
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