Mas o Brasil tinha, sim, um herói sem esporas e sem penacho: - o velho Rui. Pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez, o grande baiano era um mito irresistível. Diziam: - "O sujeito mais inteligente do mundo". Sabia todas as línguas, até chinês. Nenhum brasileiro dizia o seu nome sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. Lembro-me de uma vizinha, gorda como uma viúva machadiana, entrando na minha casa. Vinha da cidade e repetia, desvairada: - "Eu vi o Rui Barbosa! eu vi o Rui Barbosa!" E porque o vira, de passagem, por um momento fulminante, ela teve que se abanar e tomar água com açúcar. Eis o que eu queria dizer: - o meu herói podia ter sido Rui e foi Marcos de Mendonça.
Hoje, eu o vejo, de vez em quando. Passa na multidão em violento destaque. Ele sobressai, obrigatoriamente alto, que é, como o "Dedo de Deus". Foi o meu herói de calções e chuteiras. Enquanto a guerra povoava a Europa dos mortos em flor, Marcos de Mendonça enchia a minha infância.
Assim escreveu Nelson Rodrigues, a respeito do seu ídolo da infância: Marcos Carneiro de Mendonça, o goleiro do Fluminense de 1914 a 1922.
Marcos começou a carreira no Haddock Lobo, clube que acabou se fundindo ao América. E foi no clube rubro que Marcos começou a se destacar, conquistando o Campeonato Carioca de 1913, aos 18 anos de idade. Após uma briga com dirigentes do América, Marcos se transferiu para o Fluminense, junto com vários outros sócios e atletas. O Tricolor ganhava ali um dos maiores ídolos de sua história.
Em 21 de julho de 1914, a Seleção Brasileira fez a sua primeira partida, no campo do Fluminense, em comemoração do aniversário do clube. Na vitória sobre o Exeter City, por 2 a 0, o goleiro era Marcos: aos 19 anos, é até hoje o arqueiro mais jovem da história do escrete.
No Fluminense, Marcos se tornou lendário no período de 1917 a 1919, quando ajudou o clube a conquistar o tricampeonato carioca, que lhe valeu a Taça Colombo. Taça esta que foi levantada num Fla-Flu, no então-recém-construído Estádio de Laranjeiras, com a presença do Presidente da República, Epitácio Pessoa. Aos oito minutos de jogo, o juiz assinala pênalti para o Flamengo. Os momentos seguintes merecem ser narrados nas palavras de Nelson:
Ora, Marcos sabe que ele é tudo. Sim, é o deus do momento. Ele vai salvar ou perder o tricampeonato. Concentração. Serenidade intensa, calma apaixonada. Nunca sua visão foi tão límpida e tão exata. Tudo vai depender de um reflexo fulminante. Ademar Martins caminha para a bola. Jamais alguém foi tão olhado como o goleiro na hora do tiro de misericórdia. Não existe mais ninguém no estádio. Nem o artilheiro da falta. Nem o juiz, que a marcou. O próprio Presidente da República tornou-se, de repente, secundário, nulo. É o Chefe da Nação, mas o pênalti fez o estadista um pobre diabo.
A própria paisagem cessa de existir. Foi disparada a bola. E Marcos defende, como se diz hoje, parcialmente. Mas "defender parcialmente" um pênalti é um milagre. Mas antes do tiro e da defesa, Marcos pensa: - "Se eu defender tenho que mandar a bola para os lados". Ademar Martins olha, apavorado. Já não entendera a marcação do pênalti e muito menos a defesa de Marcos. A um milímetro da vitória, subitamente a perdia. Na tribuna de honra, o olhar de D. Guilhermina Guinle tem uma doçura mais viva.
Mas continua o perigo. Nova bomba, à queima-roupa. Reflexo prodigioso de Marcos. O Presidente da República tem um espanto de menino. Não entende que o mesmo pênalti seja desdobrado em três. Marcos defende a primeira vez, a segunda vez. E vem uma terceira bomba, mais vingativa, mais cruel do que as outras. Desta vez, ele se agarra e se abraça à bola como a um fado. Três defesas rigorosamente impossíveis.
O tricampeonato se confirmaria nos minutos seguintes, com uma bela vitória tricolor por 4 a 0, gols de Welfare, Machado (2) e Bacchi. E Marcos consagrava-se como primeiro grande herói tricolor.
Pela Seleção Brasileira, Marcos conquistou três títulos: a Copa Roca de 1914, e os Sul-Americanos de 1919 e 1922. Após encerrar a carreira, trabalhou como historiador, sendo também bastante respeitado por sua obra intelectual. Foi presidente do Fluminense, e dos vitoriosos: bicampeão carioca em 1940 e 1941 (encerrando um fantástico período de cinco conquistas em seis anos).
Casado com a poetisa Ana Amélia, teve uma filha: Bárbara Heliodora, crítica teatral respeitadíssima. Marcos faleceu em 19 de outubro de 1988, portanto há exatos 22 anos. A ele dedico esta humilde homenagem.
PC
E ai PC, blz.
ResponderExcluirque saudades do Paulo Victor heimmm????
Mas que fase dos arqueiros tricolores. O pior é que o mercado não anda lá essas coisas, ta difícil de se achar bons goleiros hoje.
BLOG DO CLEBER SOARES
www.clebersoares.blogspot.com
Bela e merecida homenagem, PC!
ResponderExcluirAté pelo momento de nossos goleiros, muito oportuna!
Grande abraço,
Leandro
Cleber, saudades da grande escola de goleiros que já foi o Fluminense.
ResponderExcluirAntes ainda de Marcos de Mendonça, tínhamos o inglês Waterman. Depois de Marcos, tivemos Batatais.
Depois de Batatais, Castilho. (e na reserva, Veludo, que também era convocado para a Seleção - sim, o reserva do Fluminense era melhor que todos os outros titulares)
Depois de Castilho e Veludo, tivemos Félix, o goleiro do tri no México.
Depois de Félix, tivemos Paulo Victor, que sofria a incrível média de 0,8 gols por jogo.
Depois de Paulo Victor, tá difícil de achar um goleiro em Laranjeiras!
Esse lance das 3 defesas deve ter sido espetacular.
ResponderExcluirEu de vez em quando sonho com esse lance das três defesas, desde o dia em que li esse trecho do Nelson Rodrigues. Deve ter sido espetacular.
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