Julgo bastante significativo que a primeira postagem deste blog tenha como assunto tanto o futebol quanto o direito. No meu entender, trata-se talvez dos temas mais importantes da contemporaneidade, e de cujas análises precisas dependem inexoravelmente o futuro da humanidade. Não por outra razão, este espaço pretende tratar especialmente de ambos, da maneira como descrito na apresentação do próprio blog, abaixo de seu título.
Pretende-se, nesse début, contribuir com o inflamado debate acerca das rodadas extras do Brasileirão 2013 – as que serão decididas na próxima segunda-feira, em plena Corte especializada.
Aos incautos, uma advertência preliminar, já salientada na descrição de meu perfil: sou tricolor. O genuíno, o torcedor do Fluminense, e não de qualquer outro time de três cores, como diria Nelson, um de nossos baluartes. Portanto, minha análise deve submeter-se a alguma crítica que leve em consideração tal circunstância.
E quanto a essa circunstância, esclareço que, segundo minha própria – e portanto suspeita – análise, ela não me leva, por um lado, à cegueira dos acometidos por lobotomizante paixão, nem, por outro, ao ceticismo dos que capitulam diante de qualquer qualquer chacota infundada, alienada e superficialmente reduzida a um baixo jargão publicitário conhecido como “pague a série B”.
Descabe, aqui, discorrer por que o Fluminense não deve nada. Há uma série de reportagens e publicações a evidenciar isso. Destaco, por ser mais recente,
a divulgada pelo globoesporte.com. Ali se vê que todas as bandalheiras pretéritas foram exclusivamente ocasionadas por diversas outras agremiações, mas, por alguma razão inefável (ou nem tanto – embora este texto não pretenda explorar o ponto), toda a culpa, a tão grande culpa pelas imoralidades ou irregularidades do futebol tupiniquim tenha recaído historicamente somente sobre o tricolor das Laranjeiras. É, como tem se dito por aí, inegavelmente a Geni do esporte bretão praticado em solo nacional.
No que se refere ao último Campeonato Brasileiro, porém, tenho uma visão que, no cotejo com a percepção colhida das redes sociais, parece destoar da maioria dos tricolores.
Acredito não precisar, aqui, retomar o quadro fático do presente quiproquó para avançar em minhas análises. Nem link é necessário disponibilizar. Todos sabem o que está acontecendo.
A Portuguesa, em tese, está incursa no art. 214 do CBJD, que estabelece pena de perda de três pontos, além do quanto se conquistou na própria partida, para a conduta de “incluir na equipe, ou fazer constar na súmula ou documento equivalente, atleta em situação irregular para participar da partida”. Como se sabe, houve a tal escalação e efetiva utilização do suspenso meia-atacante Heverton, instado a atuar por substituição aos aproximados 30 minutos do segundo tempo da última partida do campeonato, disputada contra o Grêmio.
Grosso modo, vêm sendo ventiladas, a favor da Lusa, teses técnicas quanto à comunicação dos atos processuais (se o resultado do julgamento realizado na sexta-feira anterior à rodada de fim de semana teria realmente aplicabilidade imediata); contra ela, acumulam-se acusações referentes ao caráter cogente do regulamento, e à inescusabilidade do amador equívoco de indevidamente fazer atuar certo atleta naquela peleja – o que, traduzido do juridiquês, significa basicamente que vale o que está escrito, regra é regra, escreveu-não-leu-o-pau-comeu.
O que quero ressaltar, aqui, passa longe dessas linhas grosseiras de argumentação, e se aproxima da chamada mens legis, do espírito da norma.
Na qualidade de magistrado, se o Ministério Público ajuíza ação penal contra alguém que furta um pote de manteiga, ou alguns chocolates, ou algum bem de reduzido valor, ou alguma quantia insignificante em dinheiro, não hesito em rejeitar a denúncia. Em outras palavras, não autorizo nem o início do processo. Mas lá, no art. 155 do Código Penal, está escrito com todas as letras: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”. Isso significaria que, pela literalidade do dispositivo legal, não teria autorização para aquilo que declarei fazer sem pestanejar.
Por que o faço, então? Porque, apesar do artigo 155 do Código Penal, a conduta concreta do indivíduo, naquela hipótese, não é crime. O direito se realiza para muito além do que a lei friamente estabelece. Seguir bovinamente o quanto está escrito nos códigos significa, muita vez, assumir postura reacionária e desconectada da realidade social – sobre a qual, em nome do interesse público e positivamente, deve incidir a regulamentação.
O juiz oitocentista, aquele que se resumia a uma mecânica bouche de la loi, a um autômato porta-voz do legislador, felizmente desapareceu após 1945, quando se verificaram os horrores em que a acrítica e cega aplicação da lei formal poderia resultar.
No caso sob análise, é imperioso constatar que a Portuguesa valeu-se de atleta sem a menor relevância para com a partida da qual participou e, o que é principal, sem qualquer referência para com o desempenho do Fluminense ao longo da competição, na qual reuniu míseros e inadmissíveis 46 (quarenta e seis) pontos.
Não consigo, sinceramente, admitir que se teçam raciocínios ou comparações como (enumeradas em ordem talvez crescente de disparate): “a Portuguesa ainda tinha interesse no campeonato porque almejava a classificação para a Copa Sulamericana”, “o Criciúma beneficiou-se com um impedimento mal assinalado” ou “o Fluminense respeitou a suspensão de Fulano ou Beltrano na partida x ou y”.
A primeira hipótese é risível porque o interesse ou desinteresse da Portuguesa na Sulamericana não deveria, segundo a ordem natural do universo, ser objeto das preocupações de qualquer tricolor deste planeta, ainda que ameaçado de no ano seguinte jogar a segunda divisão (que aliás, por favor, não são exatamente os nove círculos infernais de Dante); a segunda, do impedimento, porque levaria à admissão de que preferimos torcer não por jogos de futebol reais com nossas cervejas em punho, mas por assépticas partidas de vídeo-game em que erros de arbitragem são eletronicamente inviáveis e esse tipo de polêmica (indissociável, desculpem-me, do próprio esporte) é abolida.
E o terceiro argumento, que a meu ver é o pior, consagra aquilo que há de mais reprovável: o sentimento de que, se eu posso me dar ao luxo de não furtar um pote de manteiga, quem eventualmente o faz (por necessidade ou, no caso da Portuguesa, provavelmente por incompetência) deve ser punido exemplar e (não importa quanto) desproporcionalmente, independente de daí ter resultado ou não algum prejuízo efetivo. As extensões do argumento – basicamente algo do tipo “então poderíamos ter usado o Fred no jogo tal e ganho alguns pontos na partida tal” ou “se a Portuguesa não for punida, todos estarão legitimados a entrar com doze em campo” - só fazem piorar: sugerem que a absolvição do furto da manteiga levaria a um tal sentimento de impunidade que, no dia seguinte, serão os supermercados terrivelmente acossados por uma horda bárbara, que lhes pilhará todo o estoque de mercadorias. A hipótese é, tendo em conta o caráter ilusório das funções da pena (prevenção geral e especial), criminologicamente indemonstrável, embora não seja possível aqui nos estendermos nessa seara, excessivamente técnica para este post com tema preponderantemente futebolístico.
E, agora já abandonando a metáfora, creio que o medo de que, uma vez relevada a irregularidade da Portuguesa, seria criado um precedente a ser usado maliciosamente por outros clubes futuramente, é fruto de covardia. Ora, o Tribunal (qualquer Tribunal, aliás) existe exatamente para isto: diferenciar casos e casos, identificar má-fé, analisar detidamente cada hipótese. Em suma, lidar com o incerto. Do contrário, seria bem mais fácil e econômico substituí-lo por algum tipo de mecanismo automático de verificação de súmulas, no estilo dessas máquinas leitoras de códigos de barra ou de provas de múltipla escolha – entrou jogador irregular, está punido o clube. Pronto. Evita-se o desgaste de ações, de argumentações, de sustentações orais, de todo esse trâmite e discussão que se reduziriam a puro lero-lero processual.
É claro que nas estreitas linhas acima não exauri toda a complexidade do tema, nem rebati todos os argumentos dos que defendem uma postura ativa do Fluminense na busca judicial pela perda de pontos da Portuguesa. Mas acredito ter exposto, bem sucintamente, as razões pelas quais entendo devermos jogar a série A de 2014 somente no caso de sermos obrigados a tanto. Preferiria ter ouvido isso de nosso presidente a vê-lo habilitando-se como terceiro interessado no processo contra a Lusa.
Esclareço por fim que, embora discorde de que nosso clube tente as vias judiciais para buscar aquilo que entende ser direito seu, reprovo qualquer tentativa de rotular tal conduta como “virada de mesa”, “tapetão” ou “golpe” – especialmente se oriunda de mandatário de certo clube de regatas, cujo departamento de futebol é dissidente nosso, e cuja história não é exata e exclusivamente permeada de episódios retos e honrados. Embora controversa – como denotado pelo próprio contraponto apresentado neste texto –, a atuação judicial do Fluminense no episódio em questão ainda se reveste de algum fundamento legal, o que afasta qualquer possibilidade de “golpe”, que se constataria somente em caso de obtenção de benefícios por meio de flagrante violação a regulamentos.
Também me vejo na obrigação de ressaltar, tendo em conta que o assunto é suscetível aos sabores das mais violentas paixões, que respeito todas as opiniões em contrário. Entre estas, caso sejam mais afins ao gosto dos leitores, sugiro com entusiasmo
a do Gustavo Albuquerque, mestre das letras e da argumentação e que, até por ser advogado, certamente consegue com muito mais êxito que eu demonstrar sua parcialidade de maneira mais efusiva e convincente.
Abraços e beijos a todas e todos.
P.S.: não poderia tocar, ainda que superficialmente, no assunto da insignificância no direito penal, sem sugerir o excelente documentário de Clara Ramos, denominado
“Bagatela”. É recomendado também para o público leigo, e conta com a participação do colega e amigo Marcelo Semer, do
blog Sem Juízo. Está disponível, além de em outros lugares,
aqui.
(André Vaz)
Caro André,
ResponderExcluirPrimeiro, muito obrigado por ter permitido a publicação de seu excelente texto em meu blog.
Concordo com você quanto à postura que queria que o Fluminense tivesse, a de absoluta neutralidade no processo: aguardar e acatar o resultado do julgamento, somente aceitando jogar a Série A em caso de ser obrigado a fazê-lo pela CBF.
E discordo de sua argumentação a favor da Portuguesa não perder os pontos, pois acho que abriria, sim, um precedente perigoso, a ser utilizado por outros clubes no futuro.
Mas independentemente de achar que a Portuguesa mereça a pena, por mim o Fluminense não se meteria. Aguardaria e acataria o resultado do julgamento, seja qual for.
E sendo bem sincero, não sei para que lado "torcer" nesta 39ª rodada. Tenho preocupação séria com a imagem do Fluminense.
Ah, e claro, concordo com você quando condena veementemente esta campanha que transforma o Fluminense na Geni do futebol brasileiro.
Abraço,
PC
Também não sei pra que lado torcer...
ResponderExcluirO que tem me revoltado profundamente é a campanha covarde dessa empresa calhorda, que atende por Rede Globo, contra o Fluminense.
Postagens e mais postagens irresponsáveis inflamando torcedores por sua paixão a condenar o Fluminense como a mais abjeta das instituições. Sendo que o clube não é autor das denúncias...
Mesmo depois de os tricolores colocarem fim (de ordem lógica) ao "argumento" (prá lá de absurdo) de que a situação de Tartá e Valencia em 2010 era a mesma que vive hoje a Portuguesa, a empresa em questão permanece sem esclarecer os fatos aos torcedores, levando-os a crer no "paradoxo de Schimitt".
Coisa de imprensa da pior espécie. Já digo há algum tempo que a Globo é grande demais...isso não é bom pra país nenhum, pro Brasil não é diferente.
Também acho que o Fluminense só deva jogar a série A obrigado. E acho que ele será, de fato, obrigado a fazê-lo.
PC, essas virgens ofendidas travestidas de paladinos da justiça que querem a todo custo que a lei não seja cumprida tem apenas um objetivo:que o Flu caia pra 2ª divisão, não importa os meios, mesmo que se passe por cima do regulamento.
ResponderExcluirSe fosse ao contrário, se fosse o Flu a colocar Fred suspenso por 13 minutos, caiam o carmo e a trindade nas Laranjeiras, e esses mesmos paladinos, que querem "perdoar" a lusa, exigiriam que se cumprisse o regulamento.
Portanto, que a nossa diretoria não se faça de bom moço e não dê mole, porque ninguém nunca deu e nem dá mole pra nós, como voce pode constatar nesta perseguição de grande parte dos "comentadeiros" da imprensa, em particular a fla-press e a paulista.
Se formos bons moços e fidalgos, estamos fudidos!!!
PC, achei a argumentação falha e coloquei comentário no blog.
ResponderExcluirProponho o seguinte: querem o Flu rebaixado? OK, desde que todos que ficaram atrás de nós na tabela sejam rebaixados também. Isto inclui Fla E Portuguesa. Será que topariam?
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirFrederico,
ResponderExcluirSe eu fosse dirigente de um clube que ficou atrás de um rebaixado, faria questão de jogar mesmo a Série B.
Mas seres humanos não costumam concordar comigo. rsrs.