(texto de Mario Vitor Rodrigues)
Ajoelhados à beira da cama, colcha laranja quadriculada, estávamos eu, meu irmão, Gaia e Renata, se não me falha a memória. Aquele era o chamado "quarto da televisão". Nossos cotovelos pressionavam o fino colchão e as mãos entrelaçavam-se bem na altura do rosto. Quatro falsos anjinhos, entre risos envergonhados, brincando de pedir um milagre.
Faltavam quatro dias para o Natal de 1980, e o milagre não aconteceu.
Eu era bem menino. Morava na Itália na época, mas na minha lembrança ele sempre foi um avô carinhoso, que mesmo com idade avançada tolerava as macaquices impertinentes de um neto forçosamente desnaturado, o qual só encontrava a cada seis meses.
Uma das memórias mais enraizadas que tenho é a das vezes em que o barbeiro ia atendê-lo em seu apartamento na Avenida Atlântica. É gozado, mas ainda hoje sou capaz de sentir o perfume do creme de barbear e a quentura dos raios de sol que invadiam a varanda, enquanto a navalha deslizava pela pele branca e já frouxa do velho Neno.
Nelson Rodrigues, taí um sujeito que exalava dignidade. Mesmo perto do final, recluso, não se deixava vencer pelo descaso consigo mesmo. Jamais de barba por fazer, maltrapilho ou desasseado.
A minha primeira camisa do Fluminense foi presente dele, acompanhada de um disco pequeno de vinil, cuja capa trazia o escudo do Tricolor e o verso ostentava a letra do hino. Minha nossa, quantas e quantas vezes apelei para o seu Gravatinha para que ele desse as caras no Maracanã. Súplicas por uma parceria, como se em algum momento ela houvesse falhado. Nunca falhou. Nunca na hora agá.
E que voz! O curioso é que, ainda hoje, se assisto a uma entrevista sua, imediatamente me pego franzindo a testa para ouvir melhor, como se não o reconhecesse. Mas logo entendo e absorvo cada palavra sem dificuldade. Acho uma graça a fleuma com que atestava suas genialidades.
No dia de hoje, o orgulho, este sentimento tão inútil, surge sem pedir licença. Me atropela.
Do Nelson autor? Sem dúvida. Por suas peças, seus títulos, suas crônicas irretocáveis. E por ter sido capaz de cravar um punhal naquele que talvez seja o nosso maior pecado, a hipocrisia, expondo assim as suas tripas, para que delas cuidássemos nós.
Do tricolor apaixonado que foi? Como não? Ainda hoje é referência para toda uma torcida que justamente o venera e dele se orgulha. Graças a um dom raro para lidar com as palavras, deu vida a um Fluminense mitológico, engrandeceu a própria seleção e até clubes rivais. De tal forma que esses outros torcedores, cujos respectivos times foram agraciados com suas pérolas perfeitas, vira e mexe demonstram um orgulho febril por tais passagens. Sentem-se como se fossem vencedores de uma loteria cujo bilhete premiado nunca foi raro para o Pó de Arroz.
Acima de tudo, porém, orgulho do avô. O vô Neno.
Orgulho e saudades.
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