Amigos, de vez em quando eu esbarro num rubro-negro desvairado. Ainda ontem, encontrei, no posto 6, o Walter Clark. Nunca vi ninguém tão Flamengo! Entre parênteses, Walter Clark é um homem que vive tropeçando em milhões. Tem um ar típico do garoto do Pedro II fazendo gazeta na Quinta da Boa Vista. Conta-se que ele arranca contratos de publicidade até em velórios, até em cemitérios. Pois bem: e o Walter Clark só pensa no Fla-Flu.
Assim que me viu, ele me arrastou para um canto. Conversamos na varanda da TV Rio, diante do mar. Um cálido sopro marinho devastou-lhe o chuca-chuca de menino prodígio. Simplesmente, ele queria falar da batalha das batalhas. Em cima dos seus sapatos, pôs-se a exaltar o Flamengo. E eu senti, desde o primeiro momento, que a sua euforia é inteiramente errada, inteiramente imprópria. Falta-lhe o sentimento trágico do Fla-Flu.
Com sua cara de garoto, cara de Mozart aos sete anos, ele faz-me a seguinte inconfidência: vai comemorar a vitória com busca-pé, desfile, bombinhas, fogos diversos. Comprou um automóvel branco, nupcial, imaculado, forrado de arminho. E esse carro de noiva vai puxar a passeata. Pensa, também, numa charanga wagneriana para dar o tom alto à comemoração. Eu ouço o Walter Clark e calo. Mas há qualquer coisa de suicida nessa alegria prévia. Amigos, sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo e córneo. Foi assim, em Hiroshima, na manhã dominical da bomba. Nenhum presságio, nenhuma tensão, nada que turvasse a ternura da cidade. Pastores, senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência de um bodinho de charrete. E, de repente, há o clarão hediondo.
Eis o que me pergunto: com as suas comemorações antecipadas, o Walter Clark não estará arranjando a sua Hiroshima particular? Todavia, esse estado de tensão dionisíaca não é apenas do jovem tubarão da publicidade. As reportagens descrevem a mesma euforia em todo o mundo rubro-negro. O treinador Flávio Costa está calmo, e repito: é a tal calma da catástrofe. Ao passo que todo o Fluminense sente, na carne e na alma, a angústia que anuncia as vitórias deslumbrantes.
Mas vejam a dupla experiência que está reservada ao Walter Clark: ele hoje canta a vitória rubro-negra, para domingo chorar a vitória tricolor. Foi assim também em 1919. Naquela ocasião, os eternos rivais quebraram lanças numa batalha gigantesca. Quarenta e quatro anos já rolaram depois disso. A cidade estava, como agora, cálida de Fla-Flu. Lembro que, no dia do jogo, alguém morreu na minha rua. E, no caixão, o defunto estava de cara amarrada, porque não ia ver o clássico eterno. Mas como eu ia dizendo: com o mesmo otimismo trágico do Walter Clark, o Flamengo preparou a apoteose. Quatro corneteiros, de casaca e esporas, esperavam, com os respectivos cavalos, o final do match.
E venceu o Fluminense. Creio que não existe, na história de um clube, nada que se compare ao nosso triunfo naquele Fla-Flu. Quatro a zero. Pode-se ter uma idéia da ira e frustração dos corneteiros. Os cavalos baixaram as orelhas desoladas, e mais pareciam tristíssimos jumentos. Assim aconteceu há 44 anos. E agora?
O profeta já anunciou: "Fluminense, campeão de 63!". Desta coluna, eu já fiz um apelo aos tricolores, vivos ou mortos. Ninguém pode faltar ao Maracanã domingo. Incluí os fantasmas na convocação, e explico: a morte não exime ninguém de seus deveres clubísticos. Em certos clássicos, cada adversário arrisca o passado, o presente e o futuro. Precisamos pensar nos títulos já possuídos. Ai do clube que não cultiva santas nostalgias. Com os torcedores de hoje e os fantasmas de velhíssimos triunfos: ganharemos o mais dramático Fla-Flu de todos os tempos.
Nelson Rodrigues, em O Globo de 13/12/1963. Os destaques em negrito são responsabilidade do blogueiro.
Comentário: impressionante a atualidade das crônicas do Profeta. Elas descrevem melhor os jogos atuais que os próprios cronistas de hoje. Impossível não se arrepiar ao ler o texto postado. Reforço a convocação: tricolores vivos e mortos, subam as rampas do Maracanã domingo!
PC
Nelson Rodrigues já merecia essa homenagem aqui no blog faz tempo. :)
ResponderExcluir"Amigos, sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo e córneo."
ResponderExcluirHá descrição melhor da atual crise financeira?
Banqueiros jogando torres de dinheiro no subprime norte-americano, a farra completa e depois...
Voce está delirando junto com o fantasma do Nelson Rodrigues!!!
ResponderExcluirO campeão carioca de 1963 foi o Mengão numa final emocionante que terminou 0x0 . Eu estive no Maracanã lotado , mais de 170 mil pessoas e saí de lá com a alma lavada!!!
Eis a escalação do time Campeão : Marcial, Murilo, Luís Carlos, Ananias, Paulo Henrique, Carlinhos, Nelsinho, Espanhol, Airton, Geraldo e Oswaldo trataram de pôr seus nomes na história, e sagraram-se campeões cariocas de 1963.
História
ResponderExcluirSegundo Nélson Rodrigues, um dos maiores cronistas esportivos da história, "os vivos saíram de suas casas e os mortos de suas tumbas, para assistir ao maior Fla x Flu de todos os tempos". As palavras, escritas em sua coluna no Jornal O Globo, descreveram bem o sentimento das quase 200 mil pessoas presentes ao Maracanã naquela decisão de Campeonato Carioca.
Em 15 de dezembro de 1963, no encontro do returno entre Fluminense e Flamengo, o estádio acolheu o maior público já verificado em jogos entre dois clubes no mundo, quando as bilheterias registraram 177.656 pagantes. Acrescentando-se a esse número os 16.947 espectadores que não pagaram ingresso, o total foi de 194.603 pessoas, recorde absoluto de público no Maracanã, e também da história do futebol mundial.
Antes de conquistar o titulo, o Flamengo viveu momentos difíceis, inclusive tendo que afastar craques consagrados como Gerson, Jordan e Dida. Em determinado período do primeiro turno, o clube parecia fora da luta pelo titulo de campeão, mas reagiu no segundo turno, e a partir do jogo contra o América, teve uma seqüência de vitórias até a final contra o rival Fluminense, quando sacramentou a conquista.
Senhor Geraldo,
ResponderExcluirEu conheço a história, foi exatamente isso que aconteceu em 1963: 0 x 0, Flamengo campeão, diante do maior público da história do futebol.
Apenas uma correção: "os vivos saíram de suas casas e os mortos de suas tumbas, para assistir ao maior Fla x Flu de todos os tempos" é um trecho da crônica do Fla-Flu de 1969. Esse, vencido pelo Fluminense, por 3 a 2.
:)
Ganhar Fla-Flu é normal... (8)
ResponderExcluirhttp://www.orkut.com.br/Main#CommMsgPost.aspx?cmm=28077&tid=5322270374523049174
ResponderExcluirdomingo,eu vou ao maracanã,vou torcer pro time que sou fã,vou levar foguetes,e bandeiras,nao vai ser de brincadeira ele vai ser campeão,eu nao quero,cadeira numerada,vou ficar na arquibancada pra sentir mais emoção,porque meu time,bota pra ferver,e o nome deles são voces que vao dizer eee,ee eeeee eeeee eee NENSE!!!
ResponderExcluir"Há, no Fla-Flu, duas batalhas: uma em campo e outra em torcidas. Nós falamos da massa rubro-negra. Mas existe também, uma legião tricolor. Se, por um lado, o Flamengo é o "mais querido", por outro lado o Fluminense é o "mais amado". E é preciso que, domingo a torcida tricolor seja a mais vibrante, a mais apaixonada, e de um clamor capaz de sacudir o Maracanã em suas raízes. E só."
ResponderExcluirNelson Rodrigues
Jornal dos Sports, 12/12/1963
"O Fla-Flu de 1919":
ResponderExcluir"(...) E não sei qual era mais formidável, se a euforia Tricolor, se o silêncio rubro-negro."
Tomara, tomara!!!
Nelson Rodrigues é foda!!! Belíssimo texto!
ResponderExcluirImpossivel não se arrepiar mesmo, PC!
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