Eu sou fascinado pelas histórias que os Jogos Olímpicos nos proporcionam, em especial na sua prova mais nobre e desafiadora, a Maratona, corrida em que os atletas percorrem intermináveis 42.195 metros. Por isso, resolvi iniciar essa série sobre heróis olímpicos com aquele que é, provavelmente, o maior maratonista da história: o etíope Abebe Bikila, primeiro homem a conquistar duas medalhas olímpicas de ouro na Maratona (feito até hoje igualado apenas uma vez, pelo alemão-oriental Waldemar Cierpinski).
Em 1960, Roma, a capital da Itália, sediava a 17ª edição dos Jogos Olímpicos Modernos. Na noite de 10 de setembro, 69 homens largaram para tentar conquistar a medalha de ouro da Maratona, na histórica Via Appia. Entre eles, estava Abebe Bikila, um soldado etíope que só embarcara para a Itália na última hora, após a lesão de seu compatriota Wami Biratu. O treinador Onni Niskanen, que havia enxergado potencial em Abebe Bikila quatro anos antes, resolveu inscrevê-lo para a disputa da Maratona, ao lado de Abebe Wakgira.
Quando a Adidas, patrocinadora oficial dos Jogos, ofereceu seus pares de calçados para Abebe Bikila escolher, nenhum o agradou, e por isso ele resolveu correr aquela Maratona descalço, da mesma forma como treinava na Etiópia. Se correr a distância de 42.195 metros já parece uma tarefa sobrenatural, fazê-lo descalço, então, nem se fala. Mas foi assim que Abebe Bikila quis.
Antes da prova, Onni Niskanen disse a Abebe Bikila que o favorito era o marroquino Rhadi Ben Abdesselam, que estaria com o número 26 na camisa. Por isso, enquanto não encontrava o número 26, Abebe Bikila mantinha um ritmo intenso, para ter chances de alcançar o oponente e chegar em primeiro lugar. Quando passou a metade da prova, Abebe Bikila e o número 185 corriam juntos, tendo aberto uma grande distância para os demais corredores. Mas ele continuava forçando o ritmo, atrás do número 26, que supunha ainda estar à sua frente.
Quando passou pelo Obelisco de Axum (curiosamente, um monumento histórico etíope que tropas italianas haviam levado para Roma em 1937), Abebe Bikila sabia que faltavam cerca de 1.500 metros para o final da prova, e começou a dar sua arrancada final, se distanciando do atleta número 185. Ao se aproximar da faixa de chegada, sob o Arco de Constantino, Abebe Bikila percebeu que não havia ninguém à sua frente: ao cruzá-la, ele seria o campeão olímpico da Maratona.
O corredor número 185 na verdade era Rhadi Ben Abdesselam, que por algum motivo não havia vestido o número 26 que lhe era designado, e assim corria com o número de sua inscrição em outras provas. Ele chegou em segundo lugar, 25 segundos após Abebe Bikila, ganhando assim a medalha de prata.
O tempo da prova de Abebe Bikila em Roma foi espantoso: 2 horas, 15 minutos e 16 segundos, então recorde mundial da Maratona. Ele foi o primeiro negro africano a ganhar uma medalha de ouro na história dos Jogos Olímpicos. Na entrevista após a prova, quando perguntado sobre por quê correra descalço, Abebe Bikila respondeu: "queria que o mundo soubesse que meu país, a Etiópia, sempre conseguiu suas vitórias com heroísmo e determinação".
Naturalmente, Abebe Bikila retornou à Etiópia como herói nacional. Criou-se até um ditado popular em sua homenagem: "foram necessários um milhão de soldados italianos para invadir a Etiópia, mas apenas um soldado etíope para conquistar Roma". Ele foi promovido a cabo e condecorado pelo imperador Hailé Selassié.
Pouco após os Jogos Olímpicos de Roma, Abebe Bikila foi forçado a participar de uma tentativa fracassada de golpe de estado contra Selassié, na Etiópia. Quando o golpe foi derrotado, os principais envolvidos foram condenados à morte. Abebe Bikila foi perdoado pelo imperador, após os testemunhos dando conta de que ele se recusara a cometer assassinatos, e de que não entendia nada de política. Na opinião de muitos, no entanto, ele só foi perdoado mesmo por causa de sua medalha de ouro.
Quarenta dias antes dos Jogos Olímpicos de 1964, Abebe Bikila quase teve um colapso durante um treinamento perto de Adis Abeba: ele estava com apendicite aguda, e foi operado urgentemente. Ainda durante o período de convalescência, voltou a fazer pequenas corridas noturnas, nos jardins do hospital, a fim de continuar sua preparação para as Olimpíadas.
Abebe Bikila chegou a Tóquio, capital do Japão, sem ter certeza de que teria condições físicas de correr a Maratona. Entretanto, se inscreveu na prova e foi para a largada, desta vez calçado. Pouco mais de duas horas depois, ele entrou de volta no Estádio Olímpico de Tóquio, sob a ovação de setenta mil espectadores, com quatro minutos de vantagem para o segundo colocado (o britânico Basil Heatley).
Com o tempo de 2 horas, 12 minutos e 12 segundos em Tóquio, Abebe Bikila estabeleceu novamente o recorde mundial da Maratona. Ao se tornar o primeiro homem da história a vencer duas vezes a Maratona olímpica, ele entrava de uma vez por todas no panteão dos grandes heróis olímpicos. De volta à Etiópia, foi novamente promovido pelo imperador, e ganhou um Fusca de presente.
Já aclamado como lenda do esporte, Abebe Bikila ainda correu a Maratona dos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968. Com o número 1 na camisa, ele não conseguiu completar a prova, abandonando no quilômetro 17, com dores no joelho, que já vinha lhe causando problemas. O seu compatriota Mamo Wolde venceu, mantendo a hegemonia etíope na prova. Após a corrida, o novo campeão calçou as sandálias da humildade, e afirmou que seu amigo Abebe Bikila só não venceu a Maratona olímpica pela terceira vez porque se machucou.
Em 1969, Abebe Bikila sofreu um grave acidente automobilístico, que o deixou numa cadeira de rodas, e cujas complicações acabariam levando à sua morte precoce, no dia 25/10/1973, aos 41 anos de idade. Um ano antes, foi convidado de honra do Comitê Olímpico Internacional para os Jogos Olímpicos de Munique. O norte-americano Frank Shorter, que venceu a Maratona, foi cumprimentar Abebe Bikila após a premiação. Seu amigo Mamo Wolde não conseguiu repetir sua façanha, mas conquistou a medalha de bronze.
O enterro de Abebe Bikila foi talvez o evento de maior comoção nacional na história da Etiópia, acompanhado por uma multidão incalculável nas ruas de Adis Abeba. O imperador Hailé Selassié decretou um dia de luto oficial no país. A glória e a lenda de Abebe Bikila são eternas.
PCFilho
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